Nem toda agressão é visível, mas toda violência deixa rastro

Alguns traumas não se anunciam com alarde, o que os torna ainda mais perigosos e difíceis de identificar. São formas de violência invisíveis, lesões internas que não aparecem, coação que corrói aos poucos, fraturas que não se revelam nas radiografias e humilhações silenciosas que deixam marcas profundas na alma. Essas feridas ocultas atravessam a vida de muitas mulheres, muitas vezes sem que o mundo consiga enxergá-las. Para lançar luz sobre esse sofrimento invisível, conversamos com duas especialistas que dedicam suas carreiras a revelar e tratar essas cicatrizes invisíveis. A Drª Patrícia Valéria Milanezi Alves, autoridade em perícia odontológica legal e a Drª Juliana Moreira Chramosta, cirurgiã bucomaxilofacial que vai além da cirurgia ao reconstruir rostos e restaurar dignidades. Juntas, elas ajudam a transformar o silêncio em voz, abrindo caminho para a cura.
Pelo menos 37,5% das mulheres brasileiras vivenciaram algum tipo de violência, seja ela física, sexual ou psicológica, praticada por um parceiro íntimo nos últimos doze meses, revela a quinta edição da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Datafolha. Trata-se da maior incidência já registrada pelo estudo até hoje. A mesma pesquisa destaca que 2024 marcou um recorde no número de casos de violência contra mulheres, atingindo a marca de 27 milhões de vítimas. Ainda assim, esses dados não chegam a revelar toda a dimensão do problema, pois o impacto real é ampliado pela invisibilidade dos traumas que muitas vezes permanecem ocultos.
Para Drª Patrícia, com 30 anos de atuação e formação internacional, a perícia odontológica é uma das chaves para desvendar agressões que não deixam marcas na pele. “O reconhecimento do corpo por arcada dentária, implantes ou esmalte resistente ao fogo pode ser crucial em crimes graves”, explica. E vai além: “Há lesões internas, como o ‘dente rosado’, um indicador de asfixia, só detectado por exame técnico. Em alguns casos, o agressor escolhe áreas menos visíveis., por isso, exames detalhados, radiografias e tomografias se tornam provas essenciais”, afirma a profissional.
Do outro lado dessa dor, está a reconstrução. Drª Juliana ressalta que os traumas invisíveis deixam sequelas reais. “Recebo pacientes com fraturas faciais mal diagnosticadas que prejudicam a fala, a mastigação, a respiração. Cada cirurgia é uma devolução de identidade: retomar o espelho, olhar para si e se reconhecer de novo, com dores e traumas diminuídos”. Seu trabalho contempla enxertos, implantes e reconstrução óssea e seu destaque vem da combinação única de técnica e empatia, aspectos cruciais para vasculhar feridas que não se veem. “Não posso e não consigo detectar uma vítima de violência e não fazer nada, vai contra os meus princípios, contra a ética. Sou a profissional que ajuda, que acolhe”, declara.
Ambas são unânimes em destacar a urgência de um cuidado que vá além do técnico. Perícia e cirurgia são partes importantes, mas não suficientes. As vítimas precisam ser vistas em sua complexidade, com suporte psicológico, orientação jurídica e políticas públicas que acolham de forma estruturada e contínua. “O silêncio da vítima, na maioria das vezes, não é escolha. É medo”, afirma a dra. Patrícia Valéria Milanezi Alves. “Quando conseguimos identificar sinais que não aparecem de imediato, damos novo significado ao trauma e levamos à Justiça provas que já foram decisivas em inúmeros processos”.
Na mesma direção, a dra. Juliana Moreira reforça que sua atuação não se limita à reconstituição de estruturas faciais. É sobre devolver algo mais profundo. “Reconstruir um rosto é também reconstruir a trajetória de uma vida. É devolver autonomia emocional, é abrir caminho para que a mulher possa, enfim, retomar sua história”.
Essas vozes rompem o silêncio de um problema que insiste em se esconder. São um alerta para que a sociedade aprenda a ouvir além do óbvio, percebendo não apenas o que salta aos olhos, mas também o que se revela nos detalhes que só o olhar treinado enxerga. “Provar que aquela pessoa, quase sempre uma mulher adulta, está vivendo em meio à violência, ajudá-la a sair disso e responsabilizar o agressor é o que me move. É meu propósito”, afirma Patrícia.
Esse é o cuidado que precisa ser completo, profundo e, acima de tudo, humano. “Como profissionais da saúde, nosso papel vai muito além da técnica. Muitas vezes, as vítimas não conseguem falar, porque estão paralisadas pelo medo ou por circunstâncias que parecem impossíveis de resolver. É nesse momento que o amor pela profissão e pelo ser humano faz toda a diferença. Quando restauro um rosto, estou restaurando muito mais que a aparência. Estou ajudando a reconstruir vidas, histórias, caminhos”, conclui Juliana.
Drª Patrícia Valéria Milanezi Alves, atua a 30 anos em odontologia forense e legal. Graduada pela PUC‑PR, Doutora pela UFRJ, com formação nos EUA (Chicago, Rush). Atua em ortodontia, fissuras cranio‑faciais, perícia criminal (exames forenses) e técnica (avaliação de condutas profissionais).
Drª Juliana Moreira Chramosta é cirurgiã bucomaxilofacial, especialista em traumas faciais e reconstrução estética funcional. Atua resgatando autoestima e funcionalidade para vítimas de violência.