O Rio de Janeiro tem “vocação” para sediar grandes eventos?
Por Gloria Moraes
Recorrentemente nos deparamos com matérias na mídia que enaltecem a vocação do Rio de Janeiro para atividades relacionadas ao turismo, principalmente para sediar grandes eventos. Embora o Rio de Janeiro tenha privilégios inegáveis, em função de suas belezas naturais, sabemos que essa tese não é suficiente para dinamizar e impulsionar sua economia. Entretanto, não há como negar as belezas de uma cidade que, historicamente, exaltou inúmeras crônicas de navegadores de nacionalidades diversas que aqui chegavam para abastecer e fazer reparos em suas embarcações desde os séculos XVII e XVIII.
Durante o período em que o Atlântico era um dos oceanos mais importantes para o colonialismo europeu, os portos brasileiros, sobretudo o porto do Rio de Janeiro, era frequentado por navios ingleses, holandeses e franceses, e obviamente portugueses. Adentrando a Baía da Guanabara, passando pela formação rochosa já referenciada em inúmeros relatos e cartas como “pão de açúcar”, os navegantes se surpreendiam com as facilidades para o abastecimento de água e de víveres, destacando a presença de frutas cítricas e o cheiro particular que delas emanava, principalmente quando enfrentavam problemas sanitários a bordo, tal como o escorbuto. Igualmente, ressaltam as condições de segurança que a baía oferecia para o reparo de embarcações, dada às violentas
tempestades que enfrentavam no Atlântico. Nem sempre era fácil a negociação com o governante local, mas quase sempre as divergências eram contornadas e levadas a termo com vantagens para os dois lados.
Transformada em sede da “colônia de além-mar”, em 1763, com modestos equipamentos públicos e menos estruturada que São Salvador, a antiga sede do Império, o Rio de Janeiro foi se tornando estratégico. Além de suas condições especiais, já citadas, favorecia a interiorização do domínio português, ultrapassando os limites impostos pela Espanha, no Tratado de Tordesilhas. A vinda da Família Real e de parte da Corte portuguesa para a cidade, em 1808, exigiu sua modernização e transformações estruturais, pois de forma inusitada, a sede da colônia se tornava o centro decisório imperial. Doravante, a cidade cresceria e seria transformada em Município Neutro em 1834, capital do Império do Brasil e, posteriormente, com a Proclamação da República ganharia o status de Distrito Federal.
As reformas de modernização e de “europeização” do Rio de Janeiro, empreendida por Lauro Muller, durante a gestão do prefeito Pereira Passos, iniciada em 1904, procurava não apenas atender ao movimento de higienização da capital, mas também fazer com que o país passasse a figurar entre as nações relevantes no cenário internacional. Até a década de 60, quando perdeu a capitalidade, a cidade do Rio de Janeiro foi se modernizando e mantendo sua centralidade, tornando-se uma “caixa de ressonância” para o País. Além de centro decisório nacional, político e econômico, foi sendo identificada por suas manifestações e diversidade cultural. Era o berço do samba, das escolas de samba, das marchinhas e do Carnaval de rua, dos bailes de gala, do futebol no Maracanã, da época de ouro da música popular brasileira, da juventude dourada da Bossa Nova, dos bares e boates de Copacabana, do Cinema Novo. Assim a cidade do Rio de Janeiro foi se tornando referência nacional e internacional obrigatória. Conforme Carlos Lessa ensinou, em “Rio de Todos os Brasis: Uma reflexão em busca de autoestima” (2005), o Rio de Janeiro é o centro dos acontecimentos político-administrativos, econômicos e culturais, fazendo parte do imaginário dos brasileiros como síntese das potencialidades nacionais, espaço aberto a todos, inclusive a estrangeiros que se encantam com suas praias, paisagens e com a descontração dos cariocas. Lessa escreve: “O Rio é uma esfinge amorosa. Não come o visitante. Tende a adotá-lo”.
A perda de capitalidade, no sentido utilizado por Osório & Versiani (2015), será fatal para o desenvolvimento do Rio de Janeiro, pois a transferência de inúmeras instituições de Estado para Brasília esvaziou a cidade. Tornando o estado da Guanabara, ficando à deriva, até novamente tornar-se a capital fluminense, a cidade do Rio de Janeiro não construirá um projeto futuro, apontando para uma possível reestruturação política e de suas atividades econômicas. Sofrerá crises seguidas, assim como o estado do Rio de Janeiro, sem, no entanto, perder suas belezas naturais e a capacidade de receber a todos, permanecendo como espaço de cultura nacional, um verdadeiro caldeirão de produções e manifestações artísticas, na música, no cinema, no teatro, na literatura, na arquitetura, nas artes plásticas. Isto porque não nos detivemos nas praias, com seus modismos e esportes, no futebol e no Carnaval. Recentemente, “a noite” do Rio de Janeiro foi eleita como a melhor das grandes cidades, pois tanto os bares e restaurantes de Copacabana, Ipanema, Botafogo, e de outros bairros da Zona Sul e da Zona Norte, assim como no Centro, destacando-se a Lapa, atraem jovens e turistas, brasileiros e estrangeiros, mesmo com a escalada da violência na cidade.
Tudo isso foi consolidando a ideia de que o Rio de Janeiro teria uma “vocação turística”, para abrigar grandes eventos. Não há como negar que a cidade tem equipamentos, uma vasta rede de hotelaria e hospedagem e que grandes eventos aqui realizados obtiveram sucesso de público, mas nem sempre retornam para os cariocas os recursos necessários para impulsionar sua reestruturação econômica. Lembramos que o setor de turismo não é grande o suficiente para alavancar investimentos, emprego e renda. Embora, temporariamente gere empregos e traga algum investimento para a cidade, até mesmo do poder público federal, como no caso das Olimpíadas e da Copa do Mundo.
Nos últimos meses, temos assistido à preparação da cidade para abrigar o Rock in Rio, versão 2024, um megaevento musical que se realizará na Cidade do Rock – Parque Olímpico, durante sete dias de setembro, e que junto com a semifinal da Copa Libertadores, pareceu exigir da Prefeitura e do governo do Estado a decretação de ponto facultativo, para facilitar o deslocamento do público para esses eventos. Anunciam que o Rock in Rio deverá atrair cerca de 700 mil pagantes, gerando cerca de 32,6 mil postos de trabalho e algo próximo de R$ 2,9 bilhões para a economia do Rio de Janeiro. A primeira versão do Rock in Rio, em janeiro de 1985, também realizada na Cidade do Rock, durou dez dias, atingindo um público de cerca de 1 milhão e 30 mil espectadores, mobilizando investimentos de US$11 milhões para a organização do evento que trouxe, entre atrações nacionais e estrangeiras, bandas do circuito internacional como Queen e Iron Maiden, colocando o Rio e o Brasil no circuito internacional de shows.
Segundo os idealizadores do evento, a ideia é transformar a estrutura montada para o Rock in Rio, no Parque Olímpico, em um complexo de entretenimento permanente, com atrações durante todo o ano. A estimativa é que até 2028 os investimentos se realizem, gerando cerca de 140 mil postos de trabalho e um impacto econômico de R$ 9,2 bilhões para a economia do Rio de Janeiro, apenas em seu primeiro ano de funcionamento. Para tal, além da construção de um anfiteatro com capacidade para 40 mil pessoas, espera oferecer um parque de diversão, ringue de patinação no gelo, teleférico e até um resort, além de estabelecimentos gastronômicos. O projeto está sendo denominado de “Imagine”, e pretende transformar o Parque Olímpico, praticamente utilizado bienalmente, ocupado com
o Rock in Rio, em um dos grandes complexos de entretenimento mundiais. Aguardamos os desdobramentos, pois sabemos que investimentos dessa monta geram empregos e renda permanentes, além dos temporários, como atualmente, e sobretudo, exigem que a cidade melhore a oferta de infraestrutura, impactando a qualidade de vida dos cariocas.
*Gloria Moraes é professora do Curso de Ciências Econômicas da Faculdade Mackenzie-Rio