Por Fillipe Dornelas

A luta contra a desigualdade racial no Brasil é antiga e complexa, exigindo esforços em diversas frentes. Políticas públicas, ações afirmativas e a conscientização da sociedade como um todo são fundamentais nesse processo. No entanto, o apoio mútuo dentro da própria comunidade negra é uma das forças mais potentes para a superação da exclusão. A ausência dessa cooperação interna pode dificultar o avanço coletivo, aprofundando a estagnação econômica, social e simbólica que ainda afeta a maioria da população negra no país.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que pessoas negras representam a maior parte dos desempregados, dos trabalhadores informais e daqueles em situação de pobreza. Apesar de serem a maioria da população brasileira, seguem sub-representadas nos espaços de poder, nas lideranças políticas, no mercado de trabalho qualificado e nas universidades. Em muitos casos, mesmo quando indivíduos negros conseguem romper essas barreiras e alcançar posições de destaque, o retorno à própria comunidade, por meio do compartilhamento de oportunidades, conhecimento ou investimento, é insuficiente ou inexistente.

Esse fenômeno enfraquece o potencial de transformação coletiva. A trajetória de figuras históricas demonstra como a solidariedade entre pessoas negras pode criar rupturas significativas em sistemas opressores. Martin Luther King Jr., por exemplo, liderou um dos movimentos mais emblemáticos por direitos civis nos Estados Unidos, mas sua força não vinha apenas de seu carisma ou de sua liderança. As grandes marchas por igualdade racial foram possíveis graças à articulação de centenas de pessoas negras em igrejas, universidades e bairros populares. Esse apoio interno sustentou mobilizações históricas, como o boicote aos ônibus em Montgomery e a marcha sobre Washington, que resultaram em mudanças legislativas e simbólicas profundas.

No Brasil, o Movimento Negro Unificado (MNU), surgido em 1978 em plena ditadura militar, é um exemplo poderoso de como a articulação coletiva pode desafiar o sistema. O MNU foi fundamental para denunciar o mito da “democracia racial” e pautar a luta contra a violência e a discriminação. Uma de suas ações mais emblemáticas foi a campanha que estampou a capa de seu jornal com os dizeres “Beije sua preta em praça pública”. Mais que um slogan, foi um ato político de afirmação da identidade e do afeto negro em espaços públicos, combatendo o racismo velado e exigindo visibilidade e respeito de forma direta e inegociável. A força do movimento vinha justamente dessa capacidade de transformar a união em atos de grande impacto simbólico e político.

Ainda assim, o apoio externo também tem papel importante e não deve ser ignorado. Políticas públicas de cotas raciais, linhas de crédito para empreendedores negros e programas de inclusão produtiva são exemplos de medidas que ampliam o acesso da população negra a recursos e oportunidades. Contudo, tais iniciativas alcançam maior impacto quando encontram, dentro da comunidade negra, estruturas organizadas de acolhimento, capacitação e continuidade. O apoio institucional precisa caminhar junto com o compromisso coletivo interno.

A falta de apoio entre pessoas negras contribui para o fortalecimento de um sistema que estimula o individualismo e o distanciamento. Como apontou recentemente o artista e ícone do hip hop Thaíde, em entrevista à TV Futura, a reflexão sobre a “falta de união entre o povo negro” é uma pauta urgente e necessária. Em vez de concorrência e isolamento, é preciso cultivar uma lógica de pertencimento, solidariedade e responsabilidade mútua. Isso implica não apenas reconhecer o racismo como problema estrutural, mas também agir para que o sucesso de uma pessoa negra reverbere na trajetória de outras. Compartilhar oportunidades, contratar profissionais negros, consumir de negócios da comunidade e investir em educação e cultura negras são práticas que constroem pontes em vez de muros.

Superar a estagnação histórica da população negra exige, acima de tudo, que a comunidade se reconheça como potência coletiva. A transformação duradoura só virá quando mais pessoas negras se comprometerem com o avanço de seus pares, entendendo que a verdadeira liberdade não se sustenta sozinha. É no fortalecimento interno, aliado a políticas externas, que reside a chave para um futuro mais justo, representativo e igualitário.

*Fillipe Dornelas é bacharel em Sistemas de Informação e idealizador do aplicativo de relacionamento Denga Love.