Eu demorei a entender por que histórias surgiram sobre a Terra. E eu só descobri o seu propósito quando eu quase desisti delas.

Em 2017, terminava o meu contrato de dez anos na TV Globo. Dez anos criando personagens a ponto de conseguir ouvi-los – embora eles quase nunca fossem aprovados pelos meus chefes. Muitos dos meus heróis e vilões morreram no papel, sem a chance de travar as suas batalhas em filmes e séries. Não foi um período fácil para mim.

Eu decidi embarcar num sabático e refletir se a indústria audiovisual era mesmo o meu lugar. Me isolei numa praia na Bahia onde meu computador ficou fechado na mala durante meses. Por ora, histórias tinham virado História.

Mas, às vezes, uma pessoa encontra o seu destino na estrada que pegou para fugir dele. A praia onde fui morar se chamava Piracanga – uma ecovila frequentada por estudiosos de áreas como psicologia e neurociência. Tudo o que eu queria era sombra e água fresca (e suco verde e cacau sagrado), mas a vida tinha outros planos.

Ao invés de trazer paz, Piracanga me ensinou o que é trauma.

A História da Sua Cura

Entre retiros, formações e caminhadas filosóficas na praia, aprendi maravilhas sobre a mente humana. No topo da lista está a psicobiologia do trauma. Ela mudaria para sempre a minha relação com histórias.

Eis o que mais me impactou: quando sofremos um trauma, a lembrança é tão dolorosa que pode nos assombrar durante anos. Para evitar essa aflição, nosso Sistema Nervoso Autônomo aciona um mecanismo de defesa – uma cascata neuroquímica envolvendo a amígdala e o hipocampo. Mas não precisa decorar esses nomes: o importante é saber que o seu cérebro pode fazer você esquecer que um trauma aconteceu.

Essa defesa se chama repressão, e pesquisas mostram que ela é capaz de esculpir a arquitetura cerebral. A memória do trauma fica guardada numa rede neural “pirata” – solitária e desconectada do resto do seu cérebro – que nem você mesmo sabe que existe. Visando o seu bem-estar, a lembrança permanece inacessível, banida para o fundo da consciência numa espécie de exílio emocional. Bem-vindo ao abismo subconsciente.

Me despedi de Piracanga após cinco meses, mas o conhecimento sobre repressão ficou comigo. Havia algo estranhamente familiar nessa imagem: fragmentos esquecidos de mim esperando eu resgatá-los de uma noite escura. Algo nisso me comovia, mas eu não sabia o quê. De onde eu lembrava desse lugar?

Dessa vez, a resposta não estava em artigos científicos – mas em pergaminhos milenares. Um pensador greco-armênio chamado George Ivanovitch Gurdjieff havia percorrido o Antigo Oriente reunindo saberes de psicologia mística. Sintetizando princípios do Sufismo, Hinduísmo e proto-Cristianismo, Gurdjieff frisava que o ser humano é formado por muitos “eus” – e que o “eu” de um indivíduo “muda tão rapidamente quanto seus pensamentos, sentimentos e humores, e ele comete o erro profundo de considerar-se sempre a mesma pessoa.”

Mas qual seria a origem desses “eus”? Segui a trilha de Gurdjieff e descobri tradições que ofereciam a resposta. Uma escritura do Shaivismo do Vale de Caxemira na Índia de 1.000 anos atrás foi publicada sob o nome The Recognition Sutras, com o seguinte comentário do pesquisador Christopher Wallis:

“Todos carregamos feridas de infância porque as crianças, por definição, não conseguem processar experiências dolorosas – os seus corpos energéticos simplesmente não são maduros o bastante. Portanto, a dor não-processada é armazenada em sanskaras (termo em sânscrito para marcas psicológicas) a fim de ser digerida mais tarde. (…)

Se não digerimos e resolvemos estas experiências passadas, permanecemos versões fragmentadas e parciais de nós mesmos.”

Eu me sentia perto de montar o quebra-cabeças. Enquanto a psicologia moderna falava apenas em memórias reprimidas, a psicologia sistêmica-transpessoal estava dando um passo além – afirmando que traumas me fraturavam em novas microconsciências que passavam a coabitar dentro de mim. Segundo Gurdjieff, essas entidades são “desconhecidas entre si, nunca entrando em contato; ou, pelo contrário, são hostis umas às outras, excludentes e incompatíveis.”

Foi aí que a ficha caiu. Eu lembrei por que isso tudo me soava tão palpável.

Meu trabalho como roteirista. “Dez anos criando personagens a ponto de conseguir ouvi-los.”

Será que eu estava mesmo criando personagens?

Ou eles sempre estiveram dentro de mim?

Dramaturgias Interiores

“O céu e o inferno estão dentro de nós, e todos os deuses estão dentro de nós.”

O mitólogo Joseph Campbell ajudou o mundo a compreender que mitos – as histórias épicas sobre deuses, heróis e criaturas fantásticas – são apenas metáforas ilustrando o atrito entre emoções humanas.

Campbell dizia que as grandes histórias simbolizam “as energias do corpo em conflito umas com as outras” – mas eu suspeito que, se Campbell fosse psicobiólogo, ele diria que personagens mitológicos representam “eus” traumatizados. Dragões e cavaleiros que acreditam defender algo, e que nos rasgam por dentro com as suas batalhas emocionais.

Histórias surgiram sobre a Terra por um motivo simples: somos todos fragmentados em dramaturgias interiores. Cada vez que uma violência, rejeição ou desamparo é doído demais para integrarmos – cada vez que um microtrauma trinca o nosso “eu” – assim nasce um monstro. Vozes mentais começam duelos de anos: seu lado crítico agride seu aspecto sensível, e hordas de outros personagens (muitos deles internalizando facetas dos seus pais) atiçam intrigas e alianças numa guerra de gatilhos.

É nesse fogo cruzado que decidimos as nossas vidas. Ou melhor, os “eus” decidem por nós.

A medicina reconhece esse fenômeno: no Transtorno de Personalidade Múltipla (rebatizado de Transtorno Dissociativo de Identidade), indivíduos sofrem traumas tão intensos que constroem muralhas grossas para enclausurar a dor – e, por isso, os contornos de cada identidade saltam ao olhar clínico. Psiquiatras percebem as trocas de turno entre os “eus”.

Mas toda patologia tem gradações: para cada caso de fratura exposta, há muito mais casos de fissuras leves que demoramos a notar. Para cada Transtorno Dissociativo de Identidade, acredito que existam inúmeras pessoas cujos “eus” são tão camuflados que passam a ilusão de um indivíduo coeso.

Por que esse assunto tem a ver com cuidar? Porque os mitos dentro de cada um de nós sempre escapam para o mundo exterior. Os vilões do seu subconsciente se projetam na chefe “difícil” ou no marido “intragável” ou numa sociedade que “não me deixa em paz”. O seu grau de cisão interior vai, inexoravelmente, se espelhar lá fora – com familiares, amigos e parceiros que carregam seus próprios dramas esperando para colidir com os seus.

Eu nunca voltei a escrever histórias – pelo menos não como antes. As histórias que forjei na ciência dos traumas são de uma nova espécie, e foram premiadas em conferências internacionais. Mas o mais importante: agora vejo narrativas como uma tecnologia de reparo emocional. Criei um método chamado Histórias Neurointegrativas™ e passei a mentorar clientes e idealizar retiros ensinando a integração de traumas reprimidos.

Quer testar esse estranho paradigma hoje mesmo? Ao fechar os olhos no travesseiro, mentalize os seguintes dizeres para os seus personagens interiores (não precisam ser as palavras exatas, apenas o sentido):

“Embora eu não tenha o hábito de conversar com vocês, sei que vocês são parte de mim. Percebo vocês me fazendo ter certas atitudes na vida e entendo que agem assim porque foram feridos no passado. Compreendo que vocês querem apenas evitar que aquelas dores se repitam. Mas muito tempo se passou desde que tudo aquilo aconteceu. Muitas coisas mudaram desde então, e agora já é seguro acolher as outras consciências que vivem aqui. Nossa história não precisa ser de guerra – pode ser uma história de paz. De reconciliação. A partir de amanhã, nenhum de vocês será mais atacado, oprimido ou abandonado como talvez tenham se sentido antes. Nossa nova história será escrita por todos nós juntos, e eu estarei cuidando de cada um de vocês. Ninguém mais ficará sozinho.”

Se nada acontecer no dia seguinte, esqueça o roteirista chapado de suco verde que roubou dois minutos da sua noite. Mas – quem sabe? – talvez você se perceba mais inteiro, confiante e à vontade dentro do próprio corpo. Talvez não tenha aquela sensação de pisar em ovos entre estranhos ou ruminar durante horas porque te lançaram um olhar antipático. Em dois ou três momentos, o falatório mental pode dar passagem a uma onda morna de intuição silenciosa – e alguém que você encontra todo dia pode parecer, pela primeira vez, aberto e receptivo ao invés de fechado e ameaçador.

Se o seu dia amanhã for assim, prepare-se para viver a história da sua cura. E me mande um email contando. Dê um alô aqui nos comentários ou através do email thiago.aiache@gmail.com.