Entrelinhas – Bosque das vozes desencontradas, por Tereza Malcher Campitelli
Quando o mundo foi tomado pela surpresa de uma pandemia desvairada, o espanto tomou conta da vida sob os céus de outono. Foi de repente. Da mesma forma, as vozes invadiram os espaços, dizendo estranhezas que se misturavam com as que emergiam das nossas entranhas. As vozes uivavam, espalhando assombros desconhecidos. Por sorte, os cachorros não pararam de latir, nem os pássaros de cantar. Entre tantas vozes, que faziam as nossas quase silenciar, ficamos a aguardar o amanhã, que vinha carregado de números e máscaras.Conhecemos um silêncio da madrugada diferente, que se misturava com o piar das corujas. O pensamento ficou desencontrado com o novo que não estávamos preparados para viver. Muito menos queríamos experimentá-lo. Perdeu-se a vontade de acordar para o dia seguinte como forma de calar as vozes estridentes, que não deixavam de avisar, sem pudor de atravessar portas fechadas, o que não queríamos escutar. Foram dias e dias em que assistimos o bailar da vida no palco em que a saúde e a doença encenavam derrotas e vitórias. Sentimos a cidade ser umedecida por lágrimas e vimos lenços brancos acenar o adeus. Dia a dia, fomos constatando a fragilidade da natureza, a imperfeição dos povos e a perversidade humana. Tornamo-nos atores de um filme de ficção científica.
Nem tudo esteve perdido. Nem todos ficaram sob a força da espada de fio cortante. E a voz de alguma esperança não ficou trancada no saguão de entrada das casas. Escapou sorrateiramente, delineando o retorno, apesar de longínquo, que nunca deixou de estar em prontidão para adentrar os espaços urbanos. Durante a pandemia, novos pensamentos criaram raízes, alimentados pelo óleo de gergelim, o líquido lubrificante da vida. Abre-te sésamo! Foi o desejo exclamado, que renascia nos cafés que tomávamos pela manhã. Foi o grito do desejo de vencer a batalha contra um inimigo ágil, invisível e silencioso. Porém a vontade de realizar sonhos cantava, adoçando as horas. Uma energia serena, repentinamente, abriu suas cortinas e tranquilamente mostrou a beleza das relações plácidas e a grandeza da natureza, carregada de sabedoria. A vida, num outro prisma, mostrou ser a mais elegante criação das estrelas. Ah, poucos sabem que somos feitos de restos de estrelas. Fazemos parte de um universo rico em energia, ouro e diamante. Aliás ouro e diamante, dentre outros metais, são o que restam das estrelas que explodem, morrem e se transformam em supernovas.Grande Lavoisier! E neste momento sedento de alegria, conseguimos escutar vozes sedosas e vislumbrar as possiblidades de deixar os raios de sol brilharem sobre nossos canteiros de jasmim.
Entre tantas vozes, doces e amargas, fiquei zonza. Minhas ideias rodopiavam frágeis, vestidas de agonias e melodias, sem conseguirem distinguir as palavras verdadeiras das falsas. Mergulhei num oceano de águas gélidas e aquecidas, levando uma única vontade, não fechar os olhos, nem tapar os ouvidos para, apenas, fortalecer minhas palavras. Como delas cuidei para que não pecassem e mergulhassem em perigosos pântanos. Estou sobrevivendo e cuidando dos meus e das minhas palavras. Cortei as unhas, deixei os cabelos crescerem e passei batom cintilante. Guardei a camisola debaixo do travesseiro e passei perfume.
Todos os dias quis sentir a inteireza do meu eu. Todos os dias alimentei meus cachorros e passarinhos. Todos os dias dei brilho nas minhas palavras. Todos os dias falei com pessoas amadas. Todos os dias cuidei da minha casa. Todos os dias, decidi viver.
TEREZA CRISTINA MALCHER CAMPITELLI – é Pedagoga e Mestre em Educação, com formação literária na Estação das Letras e em oficinas literárias ao longo de 12 anos. Publicou O LIVRO MALUCO E A CANETA SEM TINTA, em coautoria com Márcio Paschoal, ed. ZIT, 2006, 2007; UM CÃO CHEIO DE IDEIAS, ed. PAULINAS, 2007; AVENTUREIROS DA SERRA, RHJ LIVROS, 2012. O conto juvenil QUASE…, LAROUSSE JOVEM, 2012, na coletânea ALGUNS SEGREDOS E OUTRAS HISTÓRIAS. AJELASMICRIM, pela editora Selo Off Flip, em 2015.ZUM-ZUM-ZUM DAS MONTANHAS: HISTÓRIAS DE NOVA FRIBURGO, em parceria com a historiadora Maria Janaína Botelho, em 2018, pela editora Tema. UM ESCONDERIJO ATRÁS DA MINHA FRANJA TORTA, em 2019, pela editora Tema. Adaptou textos para o teatro: CABEÇAS TROCADAS, Thomas Mann, SESC-Copacabana, 2000; VOCÊ ME AMA?, Ronald D’ Laing, 2002, no teatro Cândido Mendes, UM CÃO CHEIO DE IDEIAS, de sua autoria, no Teatro das Artes, Shopping da Gávea, 2007. Membro Efetivo da ACADEMIA FRIBURGUENSE DE LETRAS, sendo eleita presidente para o biênio 2018-2019. Realiza oficinas e atividades de literatura desde 2008: rede municipal e particular de ensino, RJ, e SESC- Nova Friburgo. Escreve para o jornal A VOZ DA SERRA, Nova Friburgo, na coluna semanal, MOMENTOS LITERÁRIOS. Ganhadora em 1º lugar do prêmio OFF FLIP de LITERATURA, 2014, na categoria infantojuvenil, na FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY, com o texto AJELASMICRIM. Participou, ao lado dos escritores friburguenses, da coletânea NOVA FRIBURGO, CONTOS CRÔNICAS E DECLARAÇÕES DE AMOR I e II; da coletânea FOCO NA POESIA. Em 2014, montou a editora TEMA (MEI), com sede em Nova Friburgo.