A pandemia trouxe-nos novos hábitos, como o de lavar pacotes de arroz, o de usar máscara, o de cumprimentar amigos com toques de cotovelo… Comigo, além da conformidade ao “novo normal”, a pandemia, que me fez prisioneira em meu próprio lar, trouxe à tona um velho fantasma: o da parede em branco e do aviso: “minha janela abre-se para o nada, para a parede”.

Fazia tempo que não pensava no aviso, o mesmo que me acompanhou por anos a fio. Permita-me explicar. Recentemente voltei a morar na Terra do Morro Queimado, na minha Friburgo, no mesmo apartamento em que fui criada.

Minto, houve um tempo anterior a este apartamento, o tempo em que morávamos os cinco no quarto e sala da Sinimbu: pai, mãe e dois irmãos espremidos entre cama, berços e colchonete no chão. Apartamento com cheiro de comida, com aconchego, com avó materna por perto, mas sem espaço para as individualidades e para as brincadeiras infantis.

Fácil imaginar, portanto, a nossa alegria ao mudar para o apartamento ali do Centro. Era um dois quartos, com área e um pátio todinho para brincar! As janelas abriam-se para os fundos do Cinema São José: uma parede alta, branca, que nos impedia de ver o céu. Pois a diversão da menina, esta que escreve, era ficar ali à janela, reproduzindo as falas dos filmes. “Grease”, “Kramer vs. Kramer”, “Guerra das Estrelas”, “Blade Runner”, “Amadeus”, “A Escolha de Sofia” … As falas, eu as sabia de cor. Não bastasse, a menina, a mesma, ainda dançava ao som das trilhas sonoras.

Cresci embalada pelas produções cinematográficas. Um pouco como a Cecília, a inexpressiva garçonete de “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen, que fugia da sua dura realidade assistindo, repetidamente, a sessões seguidas de seus filmes prediletos. E eu nem precisava sair de casa!

Foi com espanto, então, que ouvi a amiga da faculdade, que subira a serra para passar o final de semana comigo, dizer: Como vocês conseguem morar num apartamento com vista para uma parede? É claustrofóbico demais. Que horror!

O que não disse na ocasião é que a janela tinha o tamanho das minhas fantasias. Era ali, na parede branca, que eu projetava os sonhos. Era ali que me via rainha, ativista, artesã, princesa…

Fato é que, depois daquela experiência com a amiga, achei por bem sempre avisar aos incautos que vinham me visitar: Não se espantem. Eu não tenho vista para as montanhas, nem para o teleférico, nem para o céu. Eu, da janela, contemplo a minha alma, a projeção dos meus sonhos na parede do antigo cinema, que, mesmo desativado, ainda faz de mim personagem, mesmo que só desta crônica.

Tudo isso teria ficado para trás não fosse a pandemia. Cá estou eu novamente a olhar para a parede branca. A diferença é que hoje, ao olhar para ela, projeto sonhos mais prosaicos, não quero mais ser a heroína dos filmes. Sonho mesmo é sair andando pela Avenida, com um pacote (não lavado) de batatas fritas, sem álcool em gel, abraçando todos os conhecidos que passassem por mim…

Abracadabra
Pelo de cabra
Sim salabim
Transforme esse desejo
Em verdade para mim!

Adriana Muniz Spinelli é formada em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tendo trabalhado por 25 anos com direito corporativo em empresas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Autora de “Escovinha Básica?” Ed. In Media Res – 2019.

Atualmente, cursa Letras na Universidade Federal Fluminense, no polo Cederj.