“Redemoinho em dia quente” é o Ceará através de suas mulheres e existências inquietamente despercebidas. Mulheres de todas as idades, de todos os passos. Histórias singulares e atravessadas de um lirismo cortante, que emociona e faz imaginar, que provoca esse levantamento de terra e de poeira em dias quentes – e tão comuns. Aliás, a linguagem desse livro é uma das coisas mais gostosas do mundo: fácil de ouvir meu Ceará aqui.

Jarid atravessa o imaginário e o real, o caótico e o intacto, a religiosidade e a aspereza. Vidas cruas, por fora e por dentro, histórias contadas como nas calçadas das pequenas cidades, que trazem à luz o múltiplo feminino de cada uma das personagens.

Os contos fazem a região do Cariri ser muito mais do que um local: é o Cariri que dá voz a cada uma das mulheres aqui, que suporta os pés / os medos / os sonhos. E eu amo quando um escritor transforma o espaço físico em personagem-berço.

Em “Marrom-escuro, marrom-claro”, por exemplo, lemos o despertar de uma menina para as diferenças sociais e raciais que nos tiram pessoas e lembranças: “Ela disse que você é rica e eu sou pobre e a gente não pode ser amigo”. Já em “De melhor qualidade”, constatamos o desamparo diante da morte de uma criança – e as imagens que surgem a partir de um fato tão duro. Em “Olhos de cacimba”, o meu favorito do livro, lemos a história de uma amizade entre duas mulheres – uma idosa (Josélia) e sua cuidadora (Fátima) –, duas vidas à margem das famílias que precisaram carregar na memória e nas escolhas: “Fátima veio recomendada pela amiga da filha. Apareceu como um redemoinho em dia quente, levantando a terra toda.”.

Este livro, cuja dedicatória (“Aos que alimentam e aos que não conseguem arrancar raízes”) resume tão bem sua simbologia e lembra os atos da escrita e do enxergar toda sua gente dentro de si, é uma das coisas mais bonitas que li em 2020.

Redemoinho em dia quente

Autora: Jarid Arraes

Alfaguara (Companhia das Letras)

148 páginas Prêmio APCA DE LITERATURA 2019 – CATEGORIA CONTOS/CRÔNICAS