Presente no Brasil desde o século 18, literatura negra resgata vozes silenciadas da história
Maria Firmina dos Reis foi a primeira mulher negra da América Latina a escrever um romance, “Úrsula”, em 1859, e foi também a primeira professora concursada do estado do Maranhão. Por muito tempo, ela e tantos outros autores negros foram apagados da história, ou passaram por um embranquecimento, como ocorreu com um dos maiores representantes da literatura brasileira, Machado de Assis. “Há quem se surpreenda ao saber que assim como ele, Lima Barreto, Domingos Caldas Barbosa e outros autores consagrados eram negros. Ao serem lidos com a contextualização de sua identidade negra, em um Brasil escravocrata, revelam camadas profundas de suas reflexões com e sobre a sociedade, bem como a ambiguidade moral e as relações de poder”, observa Flávia Alcântara, professora de Pedagogia da Estácio.
A literatura negra está presente no Brasil desde o século 18, mas sua consolidação veio somente dois séculos depois. Conhecer essa riquíssima produção é conhecer a história do país e quebrar estereótipos de um povo que foi, por inúmeras vezes, retratado de forma preconceituosa na literatura brasileira e reduzido a papeis de coadjuvantes e vilões.
“Na formação da cultura brasileira, os autores negros têm um papel essencial, já que muitas das contribuições culturais mais significativas do Brasil têm raízes na diáspora africana. Escritores como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Machado de Assis – um dos fundadores da literatura brasileira – apresentam a literatura como um espaço de luta, expressão e preservação de memórias que são essenciais para a compreensão do nosso passado e para a construção de um futuro mais justo. Eles nos lembram da resiliência e da riqueza cultural negra, fortalecendo a identidade nacional e oferecendo contribuições indispensáveis à literatura, à educação e à cidadania”, destaca Flávia Alcântara.
Segundo a pedagoga e doutora em Educação, a produção literária negra traz não apenas mais representatividade para o mercado editorial, como oferece narrativas que retratam a complexidade da experiência negra e a diversidade do Brasil. “A presença de escritores negros amplia o repertório de histórias e perspectivas disponíveis, mas também firma essa representatividade e equidade em uma indústria historicamente marcada pela falta de diversidade. Quando autores negros têm espaço para contar suas próprias histórias, eles enriquecem o mercado editorial com novas vozes, que ajudam a reduzir estereótipos e a combater preconceitos profundamente enraizados. É fundamental “dar voz” àqueles que foram – e ainda seguem sendo – silenciados em diversas esferas sociais, sobretudo nas ligadas à instrução e construção intelectual”, descreve.
Para os leitores, explica Flávia Alcântara, o acesso a livros escritos por autores negros permite uma compreensão mais holística da sociedade brasileira, que se construiu a partir de inúmeras influências africanas. “Essa diversidade reflete vivências, tradições e formas de ver o mundo que são essenciais para a identidade cultural do país. Livros escritos por autores negros podem abordar temas como identidade, racismo, resistência, família e ancestralidade de maneira profundamente enraizada na realidade brasileira. E para um leitor negro, ter acesso a uma obra produzida por um autor negro representa a possibilidade de ocupação de espaços que outrora foram impensados para essa camada étnico-racial da nossa população”, afirma.
A adoção da literatura negra no currículo escolar promove uma educação mais diversa, inclusiva e representativa da realidade social e cultural brasileira, como analisa a professora da Estácio. “A presença de autores negros nas escolas dá voz a perspectivas e vivências que são frequentemente ignoradas no currículo tradicional, com obras que abordam desigualdades sociais, identidades e experiências históricas fundamentais. Ao narrar sua própria vida em “Quarto de Despejo”, Carolina Maria de Jesus expõe a realidade das periferias e das pessoas marginalizadas, sensibilizando os alunos para a importância de questões como pobreza e desigualdade social. Conceição Evaristo, com seu conceito de “escrevivência,” aborda as experiências das mulheres negras, trazendo para o centro do debate temas como ancestralidade, identidade e resistência”, pontua.
Flávia Alcântara acrescenta que o estudo de obras sobre pessoas negras, tal qual escritas por autores negros, permite que os alunos desenvolvam uma visão mais ampla e empática sobre o país. “Além disso, é uma oportunidade para que estudantes negros se vejam representados, reforçando o senso de identidade e pertencimento, enquanto ajuda a combater preconceitos e a valorizar a diversidade cultural. A inclusão de mais autores negros no currículo escolar, bem como, de protagonistas negros nas narrativas que circulam nas escolas, é garantir que todos os estudantes tenham acesso a uma educação representativa e transformadora”, finaliza.
Conheça as obras recomendadas pela professora de Pedagogia da Estácio, Flávia Alcântara:
Literatura e teóricas para adultos:
• Pele negra, máscaras brancas (Ubu, 1952)
• Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves – Record, 2006)
• Pequeno manual antirracista (Djamila Ribeiro – Companhia das Letras, 2019)
• Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (Sueli Carneiro – Selo Negro, 2011)
• Quarto de despejo: diário de uma favelada (Carolina Maria de Jesus – Ática, 1960)
• Olhos d’água (Conceição Evaristo – Dallas, 2014)
• Quando me descobri negra (Bianca Santana – Sesi-SP, 2016)
• O avesso da pele (Jeferson Tenório – Companhia das Letras, 2020)
• O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (Abdias Nascimento, Perspectiva, 1978)
• Mulheres, raça e classe (Angela Davis – Boitempo, 2016)
• Lugar de negro (Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg – Indez,1982)
• Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra (Nilma Lino Gomes – Autêntica, 2019)
• O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação (Nilma Lino Gomes – Vozes, 2017)
• A mulher negra que vi de perto: o processo de construção da identidade racial de professoras negras (Nilma Lino Gomes – Mazza, 1995)
Literatura infantojuvenil:
• Betina (Nilma Lino Gomes – Mazza, 2009)
• O menino coração de tambor (Nilma Lino Gomes – Mazza, 2013)
• O presente de Ossanha (Joel Rufino dos Santos – Global, 2006)
• Amoras (Emicida – Companhia das Letrinhas, 2018)
• O cabelo de Cora (Ana Zarco Câmara – Pallas, 2013)
• Meninas negras (Madu Costa – Mazza, 2010)
• A cor de Coraline (Alexandre Rampazo – Rocco, 2017)
• Histórias sobre pequenas grandes coisas (Otávio Júnior – Panda Books, 2022)
• A pele que eu tenho (Bell Hooks – Boitatá, 2022)
• Meu crespo é de rainha (Bell Hooks – Boitatá, 1999)
• A cor da ternura (Geni Guimarães – Quinteto, 2017)
• Gente de cor, cor de gente (Maurício Negro – FTD, 2017)