Quais os desafios da saúde mental no Brasil?

Por Marcos Torati
Apesar dos avanços proporcionados pela reforma psiquiátrica, a jornada em busca de uma saúde mental plena e acessível para todos os brasileiros ainda enfrenta obstáculos. A começar pela persistente estigmatização dos serviços psicológicos, uma barreira culturalmente enraizada que impede muitos de buscarem o apoio de que necessitam.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019 o Brasil já era tido como o país com maior prevalência de ansiedade no mundo, com cerca de 18,6 milhões de pessoas ansiosas, correspondente a 9,3% dos brasileiros. Os níveis de depressão e estresse não são menores. A estimativa da OMS é de que a depressão afeta mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo e o estresse atinge 90% da população mundial, com a possibilidade de desencadear outras doenças.
Historicamente, nossa sociedade tende a relegar o sofrimento psíquico ao domínio do espiritual, obscurecendo a compreensão da saúde mental como uma dimensão essencial do bem-estar geral. Esse preconceito dificulta o reconhecimento da necessidade de tratamento profissional e perpetua a ideia equivocada de que buscar ajuda psicológica é sinal de fraqueza ou inadequação
Essa resistência se manifesta de forma particularmente preocupante entre a população masculina. Imersos em um ideal de masculinidade tóxica, forjado pelo machismo, os homens são frequentemente desencorajados a expressar suas vulnerabilidades emocionais.
Violência urbana e saúde mental
A dificuldade masculina em lidar com aspectos afetivos e emocionais não apenas intensifica o sofrimento individual, mas também pode se manifestar na forma do potencial agressivo, contribuindo para elevados índices de violência, como homicídios e feminicídios, além de aumentar o risco de comportamentos autodestrutivos, como o suicídio, e o desenvolvimento de vícios como uma tentativa de lidar com o sofrimento psíquico.
O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher de 2025 (Raseam 2025) aponta que, em 2024, foram registrados 1.450 feminicídios, 2.485 homicídios dolosos de mulheres e 71 mil estupros de mulheres. Além disso, o Atlas da Violência do Ipea mostra que 39,4 mil homens foram vítimas de homicídio em 2023.
A exposição direta ou indireta à violência, seja através de assaltos, tiroteios ou agressões, pode desencadear transtornos como o Transtorno de Ansiedade, Estresse Pós-Traumático (TEPT), fobias e ataques de pânico. A constante sensação de insegurança impõe um estado de hipervigilância, permeado pela paranoia e pelo medo da morte e da violência, afetando a forma como os cidadãos interagem no espaço público.
O receio de ser assaltado, a preocupação em proteger-se no transporte público e o medo de vivenciar assédio são exemplos concretos do impacto da violência na saúde mental cotidiana. A erosão da confiança nas relações interpessoais emerge como um dos dramas existenciais mais severos em países marcados pela violência.
O sistema está nos adoecendo?
A incerteza econômica, o desemprego, a inflação e a dificuldade em garantir as necessidades básicas também impactam na saúde mental. A ausência de um suporte governamental robusto que ofereça um mínimo senso de amparo intensifica a ansiedade ligada ao medo do fracasso profissional e do colapso emocional.
De acordo com dados do Ministério da Previdência Social, o número de afastamentos por ansiedade e depressão no Brasil em 2024 é o maior da última década, com cerca de 472.328 afastamentos. Em 2023, foram cerca de 278 mil, o que revela um aumento de 68% e estabelece a importância de um debate sobre a relação do trabalhador com a atividade laboral.
A pressão para manter a sobrevivência impede a expressão de fragilidades, podendo culminar em transtornos de ansiedade nos quais o medo da impotência e a perda da esperança se tornam avassaladores. A falta de confiança em um suporte externo expõe o indivíduo a uma sensação de desamparo paradoxal em um sistema que, teoricamente, deveria protegê-lo.
Na teoria, o trabalho deveria promover alguma uma fonte de realização pessoal, mas, na prática, a sociedade é dividida entre aqueles que mandam, pensam, concebem, inventam e os que obedecem e executam ordens. Se determinadas atividades laborais fossem tão toleráveis e desejáveis assim, os seres humanos não teriam inventado a estrutura de classes, a exploração de mão de obra, a escravidão e a robotização.
A realidade do atendimento psicológico no Brasil
O acesso aos tratamentos psicológicos e psiquiátricos no Brasil ainda está longe do ideal. A cobertura da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e do Sistema Único de Saúde (SUS) é limitada e desigual, afetando especialmente as populações de baixa renda que não possuem recursos para arcar com tratamentos particulares.
O Relatório Saúde Mental em Dados nº 13 do Ministério da Saúde, publicado em fevereiro de 2025, retrata que existem 3.019 unidades do CAPS no país, porém, regiões como o Norte, Centro-Oeste e Sudeste contam com 0,79, 0,81 e 1,12 CAPS a cada 100 mil habitantes, respectivamente.
A desproporção entre o número de pacientes e a disponibilidade de profissionais qualificados resulta em longas filas de espera, retardando o acesso a cuidados essenciais. Soma-se a isso a preocupante proliferação de formações “express” na área da saúde mental, levantando questionamentos sobre a qualificação técnica de alguns profissionais.
Outro desafio complexo reside no fenômeno da “psiquiatrização”. Embora a popularização da psiquiatria e o acesso à teleconsulta representem avanços, uma parcela de profissionais têm adotado abordagens excessivamente medicalizantes.
Consultas breves, anamneses superficiais e a prescrição de medicamentos sem a devida consideração da psicoterapia transformam pacientes em meros números em uma linha de produção, muitas vezes saindo com rótulos diagnósticos estigmatizantes e sem o suporte psicoterapêutico necessário para abordar as raízes de seu sofrimento. Essa prática representa um fracasso ético e técnico, desperdiçando a oportunidade de oferecer um cuidado integral e efetivo.
Superar o preconceito em relação à terapia é importante para transformar o cuidado psicológico em um serviço de saúde acessível e naturalizado no Brasil. Isso implica em desconstruir a ideia de que dificuldades psicológicas são sinônimo de fraqueza, falha moral ou ausência de fé. Como sabiamente observou Freud, talvez fôssemos mais saudáveis se tivéssemos “permanecido menos perfeitos”.
Porém, políticas públicas bem estruturadas têm o potencial de promover um acolhimento psicossocial que minimize o medo da vulnerabilidade e do fracasso. Ao oferecer suporte emocional e recursos adequados às famílias e cidadãos é possível fomentar uma resiliência emocional genuína, que difere de uma mera “fachada de força”, de um “falso-si-mesmo” heróico, infalível e inabalável.
Esse amparo psicoterapêutico permite que os indivíduos vivenciem suas fragilidades como uma possibilidade, prevenindo o surgimento de comportamentos enigmáticos governados exclusivamente por sintomas inconscientes, de difícil identificação e manejo.
Embora o Brasil tenha trilhado um caminho importante na reforma psiquiátrica, a jornada rumo a uma saúde mental equitativa e acessível para todos ainda é longa e desafiadora. Superar o estigma, ampliar o acesso a serviços de qualidade, combater a medicalização excessiva, melhorar a qualificação profissional e implementar políticas públicas eficientes são passos para transformar a saúde mental em uma prioridade real no país.
*Marcos Torati é Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, com especialização em psicanálise (abordagem winnicottiana) e psicoterapia focal. É supervisor de atendimento clínico e professor e coordenador de cursos de pós-graduação em Psicologia e Psicanálise.