Racismo religioso: o que está por trás da demonização das tradições de matriz africana e da violência às mulheres de terreiro?
No dia 21 de março, o Brasil celebra o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, uma data que ressalta a importância da cultura afro-brasileira e reafirma o compromisso com a igualdade racial. No entanto, no mesmo ano em que foi assinada, o Brasil registrou 176.055 processos judiciais envolvendo casos de racismo ou intolerância religiosa, segundo dados da startup JusRacial, o que representa um aumento significativo de 17.000% nos últimos 14 anos.
Esses números refletem os desafios enfrentados pelas religiões afro-brasileiras e colocam em evidência a necessidade de combater o preconceito promovendo o respeito à diversidade cultural e religiosa do país. Segundo a jornalista e especialista em Ciência da Religião, Claudia Alexandre, a violência e ataques contra as religiões de matrizes africanas operam na lógica do racismo, que no Brasil é considerado estrutural, visto que essa intolerância tem raízes profundas que remontam a um projeto que começou muito antes da escravidão.
“O sistema de relações da sociedade escravista com pessoas negras, tanto antes quanto depois da abolição, foi fundamentado na tentativa de justificar e legitimar a escravidão africana. Para isso, foram criados argumentos e teorias que visavam inferiorizar e, principalmente, demonizar os corpos negros”, explica Claudia.
Dados da RENAFRO (Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiros), apontam que em 2022 os crimes em razão da religião cresceram 45% no Brasil e que pelo menos cinco terreiros sofreram ataques durante o período. Um mapeamento do racismo religioso no país foi entregue no ano passado pela organização não governamental em uma convenção da ONU, e mostrou que metade dos 255 terreiros pesquisados em todas as regiões já tinham sido vítimas de violência.
De acordo ainda com o projeto Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Praticantes de Religiões Afrodescendentes no Brasil, entre as principais denúncias registradas estão homicídios, ameaças, perda de propriedade, agressões físicas, dificuldade de acesso a serviços de saúde, proibição de manifestações culturais, desterritorialização de povos de terreiro e destruição de espaços naturais sagrados. O movimento ressalta que o aumento da violência se daria pelos contextos sociais conservadores, motivados por correntes políticas que buscam intervir no campo dos costumes, em que os debates sobre raça, gênero, identidade de gênero e direitos são rejeitados.
Além das questões raciais, Claudia ressalta a importância de abordar a dimensão de gênero nos terreiros, visto que 65% das casas de culto de matrizes africanas no Brasil são lideradas por mulheres, o que evidencia a importância de discutir as especificidades das violências de gênero nesses espaços religiosos. Em seu livro “Exu-Mulher e o Matriarcado Nagô”, a especialista explora como as tradições e religiosidades afro-brasileiras chegaram ao Brasil já demonizadas e a masculinização do orixá Exu como um marco da crescente intolerância às tradições religiosas africanas no país, uma visão negativa que persiste até hoje, resultando em casos extremos de violência e até mesmo mortes.
Em agosto do ano passado, em Simões Filho na Bahia, a liderança quilombola Bernadete Pacífico, conhecida como mãe Bernadete, foi assassinada a tiros após denunciar ameaças e violências contra a comunidade quilombola. Em 2017, o filho de Mãe Bernadete, Flávio Gabriel, 36 anos, conhecido como Binho do Quilombo, também foi executado a tiros por fazer várias denúncias.
“O caso da Mãe Bernadete é emblemático e reflete não apenas a violência direta contra as religiões afro-brasileiras, mas também a agressão ao matriarcado presente nessas comunidades. É alarmante que, mesmo diante de tantas vítimas, nenhum agressor tenha sido condenado. Isso evidencia a urgência de enfrentarmos não apenas o racismo religioso, mas também as opressões de gênero que afetam especialmente as mulheres”.
Para a jornalista, o enfrentamento a intolerância e racismo religioso precisa estar associado à luta contra o racismo patriarcal cis heteronormativo, uma estratégia que precisaria ser desenvolvida em paralelo com as organizações e movimentos de direitos humanos, negros e de mulheres negras. “Além disso, o uso de datas cívicas tem sido uma forma de reparação importante para os movimentos antirracistas. Neste 21 de março, é preciso que a sociedade discuta sobre o recorte de raça e gênero ao falar de intolerância e racismo religioso”, completa a autora.
O cenário de intolerância e violência contra as tradições afro-brasileiras revela um desafio profundo que o país enfrenta no combate ao racismo religioso e às opressões de gênero. O dia 21 de março precisa tornar-se um momento crucial para refletir sobre a importância de reconhecer e valorizar a diversidade cultural e religiosa do Brasil, pois ainda há muito a ser feito na construção de um país mais inclusivo e justo para todos os seus cidadãos.
Sobre Claudia Alexandre
Mulher negra, paulistana, sambista e mãe da Rubiah. Claudia Alexandre é Jornalista, comunicadora de Rádio e TV. Doutora, Mestre e Especialista em Ciência da Religião (PUC-SP) e atua com interesse na questão de raça, gênero, classe e religiosidades de matrizes africanas, em diálogo com sambas e escolas de samba, onde tem importante atuação.