Entrelinhas – A cerejeira e o beija-flor, por Catherine Beltrão
Atender um pedido de meu querido David, é sempre muito prazeroso. Desta vez, a deixa é um texto sobre a pandemia e escrita.
Escreverei um poema? Uma crônica? Um conto? Posso escolher. Um texto longo? Curto? Posso escolher. Liberdade total. Que maravilha! Mas, junto à liberdade, vem a responsabilidade. Então, o texto precisa ser de responsa. Mesmo porque ele será publicado em seu site.
A pandemia e eu convivemos bem. Não sou de me revoltar contra o inevitável. No decorrer da vida, aprendi que a adaptação é uma virtude e uma prova de inteligência. Assim, resolvi utilizar a pandemia a meu favor. Mais tempo para contemplar a natureza. Mais tempo para observar e tentar aprender com as árvores e os pássaros. Mais tempo para escrever. E assim escrevi “A cerejeira e o beija-flor”.
A CEREJEIRA E O BEIJA-FLOR
Moro em uma casa na montanha. A casa tem um jardim, onde convivem muitas plantas e alguns animais, como pássaros e borboletas. É claro que também existem outros insetos, além das borboletas, mas hoje prefiro falar somente das borboletas. E também vou escolher, entre os pássaros, um beija-flor. Por quê? Porque é este beija-flor um dos personagens da história.
O outro personagem é a cerejeira, que reina imponente no jardim. É uma árvore enorme, com mais de vinte metros de diâmetro de copa. Como qualquer outra cerejeira, ela floresce uma vez ao ano, entre os meses de maio e junho. E foi em um destes dias de fimde outono, sorvendo os raios de um Sol que deveria estar aquecendo muitas almas na montanha, recostada em uma chaiselongue de jacarandá, herança de minha avó, que meu olhar pousou numa cena.
A poucos metros à frente, a cerejeira, toda florida, com milhares de flores cor-de-rosa. Rodopiando em volta das flores, centenas de abelhas, algumas borboletas brancas e dezenas de beija-flores. O interessante é que havia lugar para todo mundo. E parecia que ninguém prestava atenção em ninguém. Ou seria ao contrário? Sim, pois com tudo isso acontecendo, ninguém se esbarrava, ninguém empurrava. Para cada serzinho alado, o importante era aproveitar aquele momento resplandecente de beleza, de luz e de néctar.
Em um determinado momento, um dos beija-flores resolveu descansar alguns segundos. Foi então que aconteceu a conversa.
O beija-flor, muito ofegante, parecia apressado. Assim que pousou no galho, perguntou:
– Dona cerejeira, por que a senhora floresce tão pouco tempo?
Ela já tinha perdido a conta de quantas vezes haviam lhe feito esta pergunta. Mas, como sempre, responderia.
– Querido amiguinho, existem dois motivos para eu florescer somente quinze dias por ano. O primeiro é para que valorizem este florescer. Todos os anos, minhas flores são esperadas ansiosamente. Fazem até festa para comemorar!
– É mesmo! Já estive presente em várias destas festas! – confirmou o beija-flor.
E continuou:
– Mas, e o segundo motivo? A senhora falou que existem dois motivos…
– Pois bem, vou lhe contar. – respondeu a cerejeira.
– O que você faz quando não tenho mais flores? Você continua a voar à procura de outras flores, certo? Então. Deixo você livre para conhecer outros lugares, outras árvores, outras paisagens. Se não fosse assim, se eu florescesse continuamente, você também ficaria sempre preso a mim.
Ouvindo isso, o beija-flor rapidamente voltou à sua incansável rotina de beijar as flores da cerejeira. Por mais alguns dias. Até encontrar outras paragens.
A natureza vive me ensinando. Naquele dia aprendi duas lições: a valorizar a espera e a deixar fluir a liberdade.
Catherine Beltrão nasceu em Paris e é engenheira, professora, escritora e poeta. Mora em Nova Friburgo desde 1996 e recebeu em 2018 o título de cidadã friburguense. Tem seis livros publicados.
Em 2017, publicou seu primeiro livro, “Artenarede, do virtual ao real: a trajetória de um sonho”.Seguiram-se dois livros para o público infantil “Os sessenta anos de um urso e de um palhaço”, em 2018 e “O Jardim de Dentro e o Jardim de Fora”, em 2019. Em 2020, participou de uma coletânea de poesias com o livro “Juntas & Diversas” e publicou seu primeiro livro digital, o e-book “A Bolha – Desenhos & Haicais”. Recentemente, lançou o livro “Poesias desnudas”.