“Abri-vos, sepultura! Posso morrer, mas dentro da armadura”

(Macbeth, Willian Shakespeare)

Era março de 1910. Sigmund Freud escrevia uma carta. O endereço era para seu amigo pastor luterano Oscar Pfister da Suíça. Ali ele dizia que tinha certo receio de que uma doença pudesse deixá-lo viver. Freud foi bem claro “num tempo em que os pensamentos falham e as palavras não querem fluir”. E ainda: “tenho um desejo secreto – de modo algum uma enfermidade prolongada, nenhuma paralisia da capacidade produtiva por um sofrimento corporal”. A força da angústia tinha se instalado!

Mas ele não tinha medo da morte. O problema era de outra ordem. Por várias vezes, dizia ele que estar impossibilitado de pensar sobre a condição humana e continuar vivendo, era a verdadeira preocupação. Dizia sobre seu trabalho: “Não consigo imaginar como algo agradável viver sem trabalhar. Fantasiar e trabalhar, para mim, estão juntos. Nada me agrada mais do que isso”.

Peter Gay, Elizabeth Roudinesco e até mesmo Frederick Crews, mostraram que os últimos anos de sua vida foram bem sofridos. Inúmeras cirurgias para aplacar a ira do câncer na mandíbula que já não o deixava comer direito. Quinze anos de sofrimento. Viveu seus últimos meses à base de morfina. Mesmo assim parece que Freud retirava forças do seu trabalho. Entre suas últimas obras, estão as maiores “Moisés e o Monoteísmo” e  “Compêndio da Psicanálise”.

Comedido no falar. Freud diante da morte iminente, disse em certa ocasião:  “Morramos dentro da armadura, como diz o rei Macbeth”. É uma maneira de dizer pra si mesmo que a despedida da vida é lutando. Não se pode se render facilmente. Vencer é um das possibilidades! Não a única!

As perdas e os lutos fazem parte da vida. Elas sempre ensinam e se transformam em aprendizados. São importantes para os novos enfrentamentos. Como dizia o psicanalista Clóvis de Castro “Sabemos que nem sempre há a opção de morrer lutando. Em algumas situações, especialmente após acidentes ou enfermidades raras, o corpo impõe limites, e a vida se torna vegetativa. Isso, porém, é a exceção. A maioria das pessoas tem as condições para se manterem em luta, mesmo quando as circunstâncias são desfavoráveis,  os recursos mínimos e de não se entregar.” De não se entregar a dor!

São os confrontos que nos impulsionam. Eles demarcam e marcam nossa existência. Se for possível, é bom ter amigos. É bom contar com eles. O pastor Oscar Pfister, em outubro de 1925, utiliza a linguagem “dura” no amigo, que estava se queixando muito da velhice, mas não de seu câncer. Assim escreve: “Há mais de 10 anos o senhor me escreveu, na forma de carta, que teme um tempo de involução intelectual. E desde então o senhor desenvolveu uma fecundidade e grandeza incrível. Neste contexto, não sei ao certo se significa mais maldade ou amor o fato de que eu não possa, neste momento, reunir necessária reverência diante de suas reclamações pela velhice”. Após cordial sinceridade, debaixo de muita luta e iminência da morte, em 14 anos algo foi produzido que mudaria os rumos da História. Da forma como nós mesmos vemos o mundo!

Uma das facetas da luta e do desconforto da frustração e da morte consiste nisso: Mexer, dar duro, sacudir, exortar, desinstalar, desencaixar do sintoma. Ajudar as pessoas a sair da posição de (re)clame, de queixume imobilizador diante de um sofrimento, da iminência da morte – por mais intenso e angustiante que seja. A lamúria nunca é o melhor lugar para instalar morada. Uma flor que dura apenas uma noite não é por isso considerada menos bela. Apesar de seu tempo efêmero e o valor da existência humana, ambos, independem da morte como uma certeza. A beleza da vida está na travessia dela.

O acolhimento das perdas e do luto permite inventar respostas específicas na maneira de habitar e desabitar o mundo.

Ronald Lopes é Historiador da Morte, Psicanalista das Perdas, Teólogo dos Lutos. Bombeiro Militar há 20 anos. Se debruça sobre o tema da morte e cemitérios há 22 anos. Autor do livro “Mortos que constroem cidades”; “Como lidar melhor com as perdas da Vida”;  texto “Morrendo como Homem “do livro Seja Homem, reinvenção de uma masculinidade em Crise! Será lançado em breve pela Editora Conquista.