Veio como um relâmpago, – mal vi, já não podia mais sair de casa. Os primeiros dias foram os mais incômodos, pareciam sempre a repetição da repetição da repetição. A revolta me subia a cabeça e certos dias eu era belicoso com meus familiares, outros eu era um pedaço inerte de lágrimas. A grande questão da quarentena não era pra mim a doença ou o isolamento, mas sim a falta de livre-arbítrio. Pior do que não poder sair de casa era a proibição presente nisso.

Eu sempre fui uma pessoa caseira mas essa obrigação carcomia meu controle sobre as coisas. Minha casa se transfigurou num cárcere privado e minha família acabou se tornando os companheiros de cela. Mas diferente de uma prisão, até o contato nos foi vedado. Os dias pareciam ser uma massa uniforme de tédio e paranoia, diariamente os jornais fuzilando mensagens assombrosas, o silêncio reinando à mesa de jantar.

Vieram dias em que me cresceu a ideação suicida e todo canto parecia uma ideia de como acabar com tudo aquilo. Também surgiram os dias de conflito, brigas inevitáveis com meus pais. E com isso um desejo enorme de fugir de casa, de desaparecer. Sem poder fazer terapia, sem poder me exercitar ou me aproximar das pessoas, vagarosamente parecia alcançar um estado de quase-morte.

Mas por alguma razão, seja sorte seja mistério, eu fui me acalmando com o tempo. Talvez eu simplesmente tivesse me conformado. Comecei a passar meus dias vendo filmes, ouvindo música, lendo livros. Fui tentando arranjar formas de preencher minha cabeça, ocultar meus pensamentos ruins. E acabou funcionando.

Lentamente a banalidade e a uniformidade das coisas foram se tornando mais satisfatórias. As conversas na mesa foram ficando mais alegres e minha casa começou a ser um mundo por descobrir de oportunidades. De certa forma é tudo procrastinação, mas que mais posso fazer além de procrastinar? Estamos numa quarentena: ou lamentamos ou procrastinamos.

O cárcere passou de privado a prezado. Os dias passam sem carregar o mesmo incômodo de outrora. E por mais que o contágio não chegue a um fim, me sinto marcado por uma esperança sutil, porém esperança. O bom de estar afastado do mundo é o fato dele se tornar uma nova oportunidade. Amanhã talvez minha lira cante mais contente. Até lá, o aguardo das horas.

Conrado Mapelle é poeta friburguense de um verão fleumático de 1999. Publica textos, fotografias, desenhos e pinturas no seu perfil do Instagram (@conradompl), além de trabalhar com oráculos (@arcanacoeli). Também atua, nem que seja na construção de si mesmo. Faz parte do Anexo Jovem da Academia Friburguense de Letras.