Minha mãe usava a expressão “conversinha de pé de orelha”quando, na melhor das hipóteses, queria dar esporro. Na pior era surra mesmo. Aprendeu com a própria mãe que aprendeu com a própria mãe. Mas aqui eu chamo de conversinha de pé de orelha esse diálogo aberto proposto com o mundo. Uma conversa entre isolados e aglomerados. Entre a penca de gente de bem e gente de bens. Entre gente cloroquinada e gente comprovada cientificamente. Longe de mim ser um juiz de paz, só quero provocar o diálogo porque é ele que vai nos salvar.

Tem uns mais certos que outros, claro. Mas o que seria da existência se as coisas fossem irredutíveis? Os boçais perdurando boçais. Os sábios perdurando sábios. Ninguém melhora, ninguém muda de casa. Primeiro, negar o diálogo é desistir da vida de alguém. Quando nos importamos o diálogo é interminável. Segundo, negar o diálogo é um ato de rebeldia e também de soberba. Quem somos na fila do pão para punirmos com o descaso e com a sentença da indiferença quem não age de acordo com nossas ideias? Divindades, claro. Mas divindades caídas do céu, cheios de dores na coluna, cada um com a cabeça pior do que a outra, com a balança marcando quilos a mais, o banco marcando moedas a menos. Não somos os melhores na arte do julgamento porque estamos no caminho da evolução, não no final dela. Por outro lado, de acordo com Leandro Karnal, não há diálogo com quem é dogmático.Nesse caso é inútil dialogar. Aliás, é até melhor evitar bater palma pra palhaço porque a piada nunca tem graça. Se a crença e a ação são extremamente nocivas a alguém a pessoa não deseja diálogo, deseja o combate. Não há diálogo com quem não quer. Essas pessoas já estão isoladas no vazio de si mesmas. Tirando essas, abra diálogo.

Mas por falar em isolamento, meu lado jornalista avança para uma curiosidade. O psicólogo japonês Saito Takami criou o termo “Hikikomori” para designar o comportamento de pessoas que vivem em extremo isolamento. No Japão são cerca de 70 mil pessoas com esse comportamento. Para Takami os números oficiais estão aquém dos números reais, que seriam de 1 a 3 milhões de pessoas na faixa etária de 15 a 39 anos. É possível, inclusive, notar esse comportamento na bela obra de Haruki Murakami, por exemplo. Para o contexto japonês as causas seriam a exigência de alto padrão de perfeição e de sucesso, principalmente entre os homens. Esse comportamento nada mais é que o desejo de viver dentro de uma concha quando o mundo tem sido cada vez mais insuportável. Para estes a pandemia é uma tarde de terça-feira nublada. São características desse tipo de comportamento a timidez, a ansiedade e, por consequência, a síndrome do pânico. Portanto, até o isolamento tem suas variações temíveis. Não vale nos isolarmos de nós mesmos. Assim a gente foge do vírus da rua e adoece do vírus da alma. O diálogo fundamental aqui é consigo mesmo.

Agora meu lado sociólogo avança para a reflexão de que por outro lado, veja que ironia da vida, o ser humano que é um ser tão social sendo obrigado a viver em isolamento para poder voltar a ser social logo depois. Na Itália o isolamento foi tardio, mas funcionou. Em Portugal o isolamento foi antecipado, funcionou. Na Alemanha foi no ponto, funcionou. No Japão nem se fala. No Brasil o isolamento quase foi, estava pra ir, quando ia deixou de ir, não foi mais e cá estamos irados entre os que ainda estão trancados e os que largaram de mão. Mais um movimento de separação. Só uma conversinha de pé de orelha resolve.

Mas antes é preciso que se compreenda algumas coisas. Morrer é a única certeza da vida e essa iminência assusta. Nunca estivemos tão perto da morte e a reação mais comum é negar, fingir que nada acontece, saltar os corpos e soltar pipa, desviar de gente de luto e jogar bola, fechar o atestado de óbito e sentar no bar. Sobretudo, é preciso ter compreensão de cada personagem desse complexo mundo. São várias camadas sociais a serem levadas em conta. Quem se isola, pode. Quem nunca se isolou, geralmente nunca pôde. Cabe olhar no fundo dos olhos de cada um pra entender o que acontece antes de apontar o dedo de álcool em gel.

Vejamos. Quem fica na portaria do prédio de quem tá isolado? Quem fará a entrega da comida pra quem tá isolado? Quem vai passar no caixa as compras de quem se mantem isolado? Quem não tem auxílio algum? Quem tem que escolher a forma que irá morrer, se de espirro ou de fome? Gente que vive em lugar onde o poder público – e um monte de setor da sociedade – não chega, não olha, não dá nem o mínimo às vezes. Veja bem, gente que vive na margem de cidadania básica, ignorada pelo poder público que nunca dá nada a favor e, do nada, ordena que fique em casa. Como se pede pra gente que pouco tem para de ter o pouco que tem? O porteiro que pega o trem lotado, mas tá de máscara, não pode tomar sua cervejinha no fim da sexta, nem fazer o churrasco pra ver reprise de jogo bom. Tem vários mundos diferentes entre quem tá isolado em apartamento apertado e quem tá solto na rua desviando de tosse e espirro de quem tá com máscara no pescoço.

É preciso separar quem tem escolha de quem não tem. Não confundir quem faz festinha pra comemorar aniversário com quem não tem o mínimo conforto em casa e nem o único prazer cotidiano que é jogar conversa fora com os amigos, ou ir ao salão, ou cozinhar pra vender. Também não confundir com quem já perdeu grande parte da sanidade porque não estava preparado. Ninguém estava. Além disso, ninguém tem rumo. Não tem quem fale coerências nessa tempestade de contradições. E aí, cancela a existência dessa pessoa? Fecha a porta da convivência e fim?

Sou também professor em formação pela UFF em Letras com ênfase em literatura e teimo em dizer pros meus alunos que quatro coisas melhorariam profundamente o convívio: interpretação de texto, autossatisfação, diálogo e terapia (que é uma forma de diálogo). Uma relação plena entre duas pessoas que se amam e desejam construir uma vida juntos é baseada, sobretudo, na honestidade, no companheirismo, no respeito e no diálogo. O diálogo denota importância, envolve o valor que você dá ao outro. Não por concordâncias, mas por possibilidades. São raros e já citados os casos em que o diálogo não vale a pena. Em todos os outros o uso da palavra e do discurso é a forma mais eficaz de melhorar o mundo. Como escritor proponho o diálogo através das narrativas e do imaginário. Minha Nova Iguaçu, minha Nova Friburgo, minha Montevidéu e meu Rio de Janeiro existem de forma muito peculiar nas páginas que criei, mas só existem quando o leitor abre diálogo entre obra e imaginação.

Referenciemos Shakespeare, o pai de todos os escritores. Hamlet, caso fosse nosso contemporâneo, cunharia de forma mais natural o maior dos questionamentos humanos: ser ou não ser, eis o diálogo. Neste caso um eterno embate entre o ser e ele mesmo. Somos complexos, inquietos, contraditórios. Cunhamos expressões que fazem sentido mesmo ao pé da letra não fazendo sentido algum. O “minha nossa”, por exemplo,exclama a antítese dos pronomes possessivos e talvez explique a dicotomia das decisões confusas de cada brasileiro. É minha ou é nossa? Outra expressão exemplar é “santo remédio”, maravilhosa para esses tempos de descaso e estupidez. Santo porque é religioso. Remédio porque é científico. Impossível ser santo e ser remédio.Mesmo assim funciona. Todos entendem. Não há melhor definição do que a arte, as palavras, escritas ou declaradas, os afagos e as pitadinhas de tempero fazem conosco tão bem quando estamos tão mal. Dialogar é um santo remédio.

Sou adepto do diálogo mesmo que em silêncio. É esse inclusive o primeiro idioma que nos arremessa fluentes no mundo. O silêncio é a primeira conversa possível entre mãe e filho recém-nascido. Gostaria, inclusive, de quando eu tiver um filho ou filha ter a oportunidade de desaprender a falar, esquecer a coleção vasta de vocabulário para poder começar e aprender da mesma forma que o pequeno ser. Conversaremos no silêncio e moldaremos vidas através dele. Coleciono os intervalos longos, os vazios de palavras ditas e lotados de palavras sugeridas. Dê o benefício do silêncio pra quem você ama e pra quem você sabe que pode amar. É do silêncio que nasce o diálogo, é do diálogo que nasce um olhar atento ao outro, é do olhar atento que desabrocham os botões do afeto e esse afeto nada mais é que amor. Não é do afastamento e da negação quem vem o amor, mas do diálogo. Outro dia me apaixonei perdidamente por um discurso, por uma poesia declamada. Foi o diálogo mais bonito que vivi nos últimos tempos.

Por fim, recordo que uma vez coloquei na boca de uma mulher de um romance o termo “conversinha de tempero”. A personagem define como “conversa que só sugere, só joga no ar, só dá indícios”. Eu adoro uma conversinha de tempero, confesso. O olho no olho, o aperto de mão, pele com pele, é disso tudo que sinto falta. É por isso que estou doido que isso tudo passe logo, doido pra aglomerar histórias.É no isolamento que a gente percebe a falta que uma conversa faz. Se for com tempero então, melhor ainda.

Thiago Kuerques, iguaçuano, é contista, cronista e romancista. Professor de literatura em formação, jornalista no Site da Baixada, fotógrafo, empresário e sobrevivente. Seus livros são O Cara Que Não Publicava Livros (2012), Ensaio dos Poemas Pelados (2013), Território (2017) e os romances A Balada do Esquecido (2018) e Tordesilhas (2019). Em 2017 foi vencedor do Prêmio Baixada na categoria Literatura. Realiza oficinas literárias, de escrita criativa, de microcontos e palestras literárias para jovens e adultos.