Outro dia, dia outro, tudo a mesma mesmice nessa quarentena, andei pensando em conectividade. Cruzar com o sujeito pela tela de um computador virou rotina. A gente dá oi, tudo bem. Novidades? Sim, muitas. As de sempre. Pois é. Beleza. Quando acabar essa quarentena vamos marcar um café. Bora marcar sim. Pior é quando sua luzinha verde acende junto com a luzinha verde de uma alma intragável. Não dá pra mudar de calçada. Fala, sumido, e aí? Já tomou a sua cloroquina hoje? Vou fazer um churras aqui em casa. Off. Aff. Virou lugar comum também dar de cara com avatar de anime em lives. Mais comum do que deparar com o meu vizinho de porta, seja no elevador ou indo comprar pão de manhã. Pela internet, já me pediram pó de café, cinquenta contos, um botijão de gás, a senha do meu cartão, mamilos, vela benta, opinião de que pijama usar, e até a minha coleção do Bergman emprestada. “Connection, I can’t get no”, como já canta Gilberto Gil. Já o meu vizinho de porta nunca me pediu nada. Não me pede a senha do wi-fi. Nem a clássica xícara de açúcar só pra espiar a decoração da minha sala. Não me pede pra abaixar o som, não me pede pra receber a encomenda dele enquanto ele está fora. Eu queria o e-mail desse vizinho. Pera, antes eu queria o nome desse vizinho. Será que tem alguma correspondência dele na recepção do bloco? Ele se mudou pra cá logo no início da quarentena, como quem recorre a um bunker no Apocalipse. Acho que já trocamos um oi, não me lembro. Estou disposto a descer até a recepção e a arcar com o risco de uma contaminação por covid somente pelo precioso nome de um vizinho a quem posso dar o nome que eu bem entender? Caruso. Ok, batizado. Outro dia eu o ouvi cantar “Caruso” e achei digno de pena, mas valeu pela dramaticidade. Eu pude imaginá-lo dando aquela pausa marota no meio da faxina e fazendo do cabo da vassoura o seu microfone. Eu já prefiro cantar no chuveiro, tipo aquele ratinho do Castelo Rá-Tim-Bum, com direito a uma coreô deslizante. Se bem que por esses dias, em meio às minhas leituras aleatórias da quarentena, fiquei meio escabreado com um texto indiano hindu sobre banhos sagrados, que purificam a alma e coisa e tal, mas é aquilo: tem que ficar pianinho sob o chuveiro. Se cantar mal, pior ainda, aí é que deus nenhum vira a cadeira pra você. E no final do texto uma foto de um indiano dando um tchibum no Ganges e pensei que o conceito de pureza deve ser bem relativo. Pois é. O Caruso deve ser puro, um homem de coração forte e valente: é botafoguense. Pude ouvi-lo xingar em espanhol a mãe do Loco Abreu enquanto assistia a um desses VTs de partidas de futebol que estão passando na TV durante a quarentena. E depois vibrou pelo gol de honra do Botafogo e quebrou um copo na comemoração, foi caco pra tudo quanto é lado. Ele varreu cantando alguma coisa em italiano. Caruso tem cara de Caruso, eu pude vê-lo da minha janela quando ele foi, sem máscara, jogar o lixo fora. E me pus a matutar que lixo havia naquela sacola plástica preta. Tive a impressão de ter pingado sangue dela. Era só uma carne estragada e descongelada, mas minha cabeça, lógico, ia pintá-lo como um assassino em série. Caruso começou a me passar a imagem de um serial killer de Giallo, um gordinho solitário e psicopata que, à noite, fura a quarentena para furar o peito dos inocentes do Leblon. Nunca flertei tanto com o imaginário como ao longo desta quarentena. E a invencionice se mistura à memória, e a memória faz com que eu revisite espaços residenciais por meio dos sonhos. Tenho pensado muito na casa de minha infância, a do Rio de Janeiro, e no quanto eu pulava sobre a cabeça da dona Julita do primeiro andar. Penso em dona Bela, outra vizinha, já com seus oitenta e cacetada de idade, e no dia em que me escondi atrás de sua cortina e apliquei-lhe um baita susto. O coração dela parou por um instante quase eterno e eu pude ouvir o silêncio dessa trégua. Um som que até hoje me atormenta. Que engraçado sonhar tanto com casa, com vizinhança. E falar tanto de um vizinho que sequer sei o nome. Queria falar de conectividade, das lives da Teresa Cristina, do projeto Home Made da Netflix (dava pra por a prosa de um trimestre em dia enquanto espero na fila do Caixa Tem aqui), das saudades da família, do dente que resolveu doer, das trocentas receitas novas de bolo, de palavras cruzadas… mas falar de conectividade não significa falar só do que se conecta com a gente. As vidas secretas são as que mais se enraízam no terreno fértil da minha cuca e se conectam com meu inconsciente. A vida secreta de Caruso faz com que eu, surfista das mais altas ondas virtuais, me sinta tão desconectado quanto a um monge budista do Tibet. Uma parede basta para ressignificar minha visão de mundo. A quarentena me faz repensar relações e me induz a um universo paralelo que de tão surreal se torna a coisa mais tangencial do mundo, de modo que o avatar do Naruto do meu aluno dentro de uma live dentro de uma sala virtual dentro de um e-mail dentro de um navegador seja mais real do que o rosto do meu vizinho de porta. Mais real do que o rosto de amigos que não olho nos olhos há meses. Desconectando… desconectando… hoje, parece que morrer é cair a internet. Dá no jornal: setenta mil. Minha mãe me repassa pelo whatsapp a profecia de uma santa e roga que eu compre velas. A escuridão, ela diz. Hackers roubam o meu dinheiro. Perco o sinal da internet no meio da live. Desconecto-me. Pairo. Piro. Que mundo é esse. Que vizinho é esse que não existe. Que cachorro é esse que puxa a meia do meu pé. Que mulher é essa que cata o feijão e me olha e me sorri como se me conhecesse. Tudo aos poucos se assenta… me ocorre algo de Cecilia Meireles.

Em que tela ficou travada a minha face?

Quando todo esse desabraço findar, vou bater à porta do Caruso. Pra ver se ele existe. Pra ver se eu existo. Levarei comigo um bolo de banana vegano da minha esposa. Farei uma conexão à moda antiga.

Toc toc.

Carioca de nascença e friburguense de coração, Lohan Lage Pignone é professor de Língua Portuguesa e Inglesa da rede privada de ensino. Cruciverbalista da Editora Ediouro. Cantor sometimes. Roteirista por formação. Produtor Cultural. Publicou um livro de poemas em 2011, “Poesia é Isso” (Ed. Multifoco). Organizou antologias literárias, além de participar de algumas. Dirigiu o documentário em curta-metragem “Terra Nova, Friburgo”, em 2019.