Eu ganhei, aos doze anos, um livro que ainda guardo. Nele estão dez virtudes que preservo, fichadas na memória, qual tabuada, para recorrer  em momentos de enfrentamento. Coragem, perseverança; responsabilidade; trabalho; disciplina; compaixão; fé; honestidade; lealdade e amizade. Nunca  mudei a ordem. E minha mãe adorava me perguntar sobre cada uma delas. E eu, sem titubear, declamava, ao final, uma frase de São Paulo : “O que é verdadeiro e honroso, correto e puro, amável e de boa reputação, é que deve habitar a nossa mente.”

Nesses tempos de pandemia, onde o desconhecido nos assusta e o invisível nos ameaça, vejo gente se descortinar. Mostrar a real face da maldade e da loucura. Gente que aproveita a dor coletiva e a fraqueza humana para destilar ódio e vingança. Mas vejo gente crescer, aprumar o olhar e despertar as melhores ações. Gente é mesmo sortida! O mundo me parece uma bombonière, onde delicados coloridos e doces dividem a vitrine com azedas balas de gengibre. Assim é o mundo. E compreendo que cada um tem seu tempo para entender e dimensionar as mudanças que ocorrerão. A paciência e a tolerância é que nos ajudarão na travessia. Há sim um abismo a ser enfrentado, e quem sou eu para definir o que restará de cada um de nós. Quem sobreviver, verá!

Minha avó paterna, Teresa, atravessou o oceano aos dois anos, na companhia de seus pais Giácomo e Giuseppa e suas irmãs Maria, Rosa e Pierina. Veio para o Brasil em 1894, no Vapor Solferino que desembarcou no Rio de Janeiro. Trouxe sonhos. Enfrentou medo e escuridão. Desconhecido solo que a abrigou.

Muito cedo começou a costurar. Inventou moda e virou modista. Conheceu o refinamento e sabia como poucas a verdadeira tradução da elegância. Desfiava por horas os retalhos de tecido para, após fiar, produzir a linha que cerziria os pequenos estragos que as faúlhas de carvão, do ferro de passar, ocasionavam nos trajes prontos para entrega às clientes.

Tinha uma paciência heróica com as tragédias que a vida impõe a todos. Não há quem escape das dores. Não há. Cada um à sua moda. Assistiu o Brasil enfrentar a gripe espanhola, o tifo, a tuberculose, a febre amarela, perdeu filhos, netos,  ganhou muito com o seu trabalho e, sempre generosa, ajudava a quem necessitava. Encontrava prazer em viver cada segundo. Mas nunca tratou o trabalho como obrigação, nunca usou a janela de casa para observar a vida alheia, jamais julgou alguém além de si. Como dizia aos quase cem anos : “Nunca tive costas quentes. Quentes só as pernas, cansadas de tocar o pedal da máquina de costura.”

Com os fios que costurou sua existência, minha avó Teresa escreveu nas entrelinhas. E eu busco em seu exemplo as virtudes que necessito agora, mais que nunca, para me fortalecer diante desse momento sem igual. Já entendi que é preciso ouvir as vozes que as palavras possuem. Enxergar nas letras as traduções de sentimentos. Nunca me afastando daqueles ensinamentos que me foram valiosos e ainda o são. O Livro das Virtudes sempre me salvará!

Estou confinado? Isolado? Escravo do desconhecido? Ou tendo a oportunidade de me refazer e me alimentar para entender o novo mundo que se abrirá? Para responder, decidi convidar pessoas queridas para falar de suas vivências nesses tempos de pandemia. A partir da próxima semana, muitos publicarão aqui seus relatos.

Há silêncio enquanto escrevo. E recordo uma frase que diz : “ Quem sabe escutar o silêncio pode ver os sons e ouvir os movimentos.”  Sejam bem-vindos às “Entrelinhas”.