O compositor João Roberto Kelly, 85 anos, último compositor remanescente da Era de ouro das marchinhas carnavalescas, compôs “Romeu ou Julieta”, uma novíssima marcha do gênero, gravada pela diva carnavalesca Maria Alcina, já disponível no Spotify. Mas não se trata de “mais uma” marchinha, mas da coroação de uma carreira que sempre abraçou personagens LGBTs em seu cancioneiro.

Para quem não sabe, ele foi o autor das músicas do primeiro show musical importante de travestis do país, “Les Girls” (1964), criadas a pedido de Rogéria, que acabou consagrando tanto ela quanto Divina Valéria, abrindo todo um campo de trabalho para as artistas transformistas e travestis no Brasil. Ele também estourou no carnaval com marchinhas clássicas que direta ou indiretamente versavam sobre a comunidade, como “A cabeleira do Zezé”, na voz de Jorge Goulart, “Menino gay” e “Maria Sapatão”, ambas na voz de Chacrinha.

Se para alguns, certas abordagens podem soar datadas, sua marchinha atual vem para redimi-lo de qualquer mal entendido, pois sempre foi fã e amigo dessa turma. A prova disso está na espontaneidade com que compôs “Romeu ou Julieta”, pois é contemporânea sem ser artificial, ou seja, sem perder o caráter subversivo, animado e brincalhão que consagrou o gênero. Trata-se de uma parceria com o jornalista, historiador da música brasileira e produtor artístico e executivo da faixa, Rodrigo Faour, que se apressa em dizer: “A letra é toda dele, eu só dei o mote, que era ambiguidade sexual da figura da Maria Alcina, que há meio século ainda desperta dúvidas sobre sua verdadeira identidade de gênero, se é mulher cis ou trans, isto dito por ela mesma”.

Sim, a marchinha foi composta em homenagem à cantora e especialmente para ela cantar e a letra é uma pérola:

“Adivinhe quem quiser

 Se sou homem ou mulher

 Eu sou mistura de Romeu com Julieta

 Eu sou a cara do futuro do planeta…

Se você me quiser

Tem que ser do jeito que eu vier

“Talvez sem se dar conta, Kelly, para além de uma homenagem à Alcina, conseguiu sintetizar que os papéis tradicionais atribuídos a homem e mulher na sociedade contemporânea estão muito mais flexibilizados, fluidos e, mesmo dentro do meio LGBTQIAPN+, mas também entre pessoas cis e hétero, as possibilidades são múltiplas, saindo dos estereótipos do passado, com a ascendência dos que se assumem não-binários, ou seja, nem homens nem mulheres”, explica Faour.

Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=BDda4Mrhn0Y&t=163s

A alegria da cantora em ser homenageada

“Ele (o João Roberto Kelly) está encantado com a gravação e eu estou muito feliz, realizada”, diz Maria Alcina, que concretizou um grande sonho, ao gravar uma canção inédita do compositor feita especialmente para ela. Sobre os versos, Alcina diz que o compositor não poderia ter sido mais feliz. “Essa música veio expressar com muita graça a ambiguidade da minha personalidade. Até hoje as pessoas chegam e me perguntam: ‘Você é homem ou mulher? O que é que você é?’ E eu respondo: ‘Eu sou o que você quiser’”, diverte-se a cantora. “O Kelly, mesmo sem eu conversar isso com ele, captou totalmente a minha essência, mas ele é um artista e o artista tem essa sensibilidade”.