Foto: Priscila Prade

“O que nos Mantém Vivos?”, indicado ao Shell “Melhor Direção”, APCA “Melhor Espetáculo” e vencedor Prêmio Deus Ateu “Melhor Atriz”, estreou no Sesc Consolação em novembro de 2022, foi contemplado pelo 12º Prêmio Zé Renato de Teatro, seguiu para temporada no Itaú Cultural em São Paulo, apresentou-se no Festival Internacional de Rio Preto e fez uma temporada histórica no Teatro Oficina, fundado em 1958 por Renato Borghi, José Celso Martinez Corrêa, Etty Fraser, Fauzi Arap, Ronaldo Daniel e Amir Haddad. O espetáculo agora chega ao Teatro Sérgio Porto, com estreia no dia 24 de fevereiro.

O espetáculo, com roteiro de Elcio Nogueira Seixas e direção de Rogério Tarifa, traz no elenco Renato Borghi, Débora Duboc, Elcio Nogueira Seixas, Nath Calan e Cristiano Meirelles.

A peça é estruturada em quatro unidades temáticas: “Todo Dia Morre Gente”, “Deus Acima de Todos”, “Pátria Armada” e “Luta Amada”, com o intuito de se lançar criticamente sobre a ameaça de autoritarismo fascista que tem assombrado o Brasil nos últimos anos.

“A partir de 2019, o país mergulha no obscurantismo e logo em seguida é destroçado pela pandemia de COVID 19. Portanto, Brecht havia se tornado ainda mais necessário para nos guiar em meio à escuridão que se abateu sobre o Brasil. Éramos desacatados todos os dias por falas e gestos monstruosos da gente torpe, tosca e assassina que sequestrou a nação para colocar em prática um projeto de poder baseado na destruição de tudo que importa para a vida humana: a saúde, a educação, a cultura, a ciência, as florestas e até as amizades e laços familiares. Era preciso montar uma peça que desse conta de colocar em cena toda a nossa dor coletiva, nossa revolta e também nossa alegria guerreira para enfrentar o dragão da maldade. Foi assim que nasceu ‘O que nos Mantém Vivos?’. Esta era a pergunta mais importante que poderíamos fazer a nós mesmos e ao público”, relata o criador do roteiro, Elcio Nogueira Seixas.

A montagem é uma espécie de continuação de ‘O que Mantém um Homem Vivo?’, clássico dos palcos brasileiros criado em 1973 por Renato Borghi e Ester Góes como obra de resistência à ditadura militar. Brecht foi escolhido pela dupla para driblar a censura da época justamente por sua capacidade de elaborar sua crítica feroz através de estruturas fabulares sofisticadas e, muitas vezes, repletas de humor, que despistaram a vigilância ignorante dos agentes do regime.

Atento ao momento explosivo e não menos decisivo que o Brasil atravessa, o Teatro Promíscuo, companhia fundada por Borghi e Elcio Nogueira Seixas em 1993, buscou em seus arquivos o roteiro original da peça, datilografado em uma antiga Olivetti por Renato Borghi e Esther Góes durante o período mais sombrio dos anos de chumbo para levantar uma nova montagem, que acabou indo para o palco em 2019, com Renato, Elcio e Georgette Fadel se revezando na atuação e na direção, imersos na cenografia arrojada de Daniela Thomas.

O espetáculo causou grande comoção arrebatando plateias, assim como aconteceu com o retorno de “O Rei da Vela” em 2017 (com Borghi novamente brilhando em seu Abelardo I) e de “Roda Viva”, em 2018, cinquenta anos após suas estreias, exatamente por lembrarem ao público que o perigo do autoritarismo está sempre à espreita e que “é preciso estar atento e forte” para garantir a democracia e os direitos conquistados pela sociedade.

“O que nos Mantém Vivos?” foi a pergunta que Renato Borghi se fez ao passar por uma cirurgia no coração pouco antes do começo dos ensaios. “Aquela experiência radical de ter meu coração arrancado e colocado sobre uma mesa fria me deu vontade de colocar meu coração toda noite sobre o tablado para fazer essa pergunta ao público”, diz o artista. E acrescenta: “É uma peça de sobrevivência. Mas não só a minha. A sobrevivência de todos nós como coletivo que somos. Há um mundo organizado em bases desumanas. Bertolt Brecht quer contribuir para sua mudança. Seu teatro é crítico, agudo, lúcido. Ele busca aclarar as contradições do indivíduo no relacionamento social. Brecht é carne, suor e sobrevivência e sua obra é inspirada no ser humano concreto em sua luta diária pelo pão”.

O roteiro é dividido em prólogo, primeiro ato, intermezzo, segundo ato e epílogo, com destaque para duas grandes unidades: “Deus Acima de Todos’, em que são representadas a cena do Pequeno Monge sobre fé e ciência, da peça “Galileu Galilei”, personagem imortalizado por Borghi na montagem icônica do Oficina em 1968, em pleno AI-5 – e um compilado de trechos de “Santa Joana dos Matadouros”, tratado definitivo de Brecht sobre religião e capitalismo, onde o texto foi praticamente todo transformado em música pelo maestro William Guedes e o compositor Jonathan Silva, dialogando com uma linguagem cênica que flerta com a ópera e o blues – e “Pátria Armada”, que traz a história da irresistível ascensão do miliciano Arturo Ui, uma paródia de Hitler e outros ditadores sanguinários construída sob uma linguagem circense, como metáfora ideal para dialogar com a tentativa de golpe de Estado que esteve em curso no Brasil.

“Na nossa versão, Arturo Ui – ainda um quase desconhecido – vai até o camarim de Renato Borghi para ter aulas de teatro, aprender a falar em público, andar, sentar, já que almeja se tornar um grande líder. Enquanto “ensina”, constrói e desmascara o aprendiz aos olhos do público, Renato ensaia, encena e interpreta Abelardo I, criando um duplo de Arturo e fazendo-nos refletir sobre o tempo histórico atual em diálogo com o tempo histórico da montagem do ‘Rei da Vela’, tão marcante na carreira do ator”, explica Rogério Tarifa, diretor convidado pelo Teatro Promíscuo para a encenação.

“A peça é um ato-espetáculo-musical que comemora os 65 anos de carreira do ator Renato Borghi. A peça é uma canção, uma música. É um abraço, um afago, o oxigênio, a arte, o teatro, o trabalho, a revolta, um grito contra o desacato, a comida, a vacina, a ciência, a busca, o nascimento, a troca, o encontro, a amizade, a cura, o outro, a outra ou o que cada pessoa pensa ao ouvir a pergunta que dá título à obra”, acrescenta Tarifa.

A concepção de “O que nos Mantém Vivos” se baseia na busca por uma horizontalidade maior entre a obra e o espectador. O público então é convidado a refletir junto aos intérpretes, por meio dos elementos épicos da dramaturgia e da estrutura permeável da construção do espetáculo, que conta com depoimentos pessoais dos atores sobre suas experiências em relação aos temas evocados pela peça. A música também se coloca como elemento fluido capaz de transportar ideias muito duras ao coração do público de forma afetuosa.

“Queremos criar em cena um transbordamento inacabado, um rascunho visceral, que potencializará o acontecimento do teatro: o encontro dos artistas com a plateia”, finaliza o diretor.

Renato Borghi

“Quem é este extraordinário e monstruoso ator? O que é isto?”. Foram essas as indagações de arrebatamento do público após uma exibição de “O Rei da Vela”, no Theatre Babylon, numa projeção legendada em alemão pela Cinemateca de Berlim, narradas por José Celso Martinez Corrêa no livro sobre o ator para a Coleção Aplauso.

Renato e Zé Celso nasceram no mesmo dia, do mesmo ano e quase como uma predestinação dionisíaca seguiram juntos por duas décadas, no palco e na vida, se afastaram profissionalmente, mas continuaram ligados pelo amor, amizade, admiração e sobretudo pela defesa da arte e do que acreditam. Estudaram Direito, romperam com o Direito e com os padrões da classe média e foram juntos para o teatro, radicalizaram, experimentaram, romperam e se reencontraram.

“Renato é uma divindade, um Rei, um Orixá-Exu do Teat(r)o Brazyleiro, um nobre gênio em grandeza do grande Raul Cortez e no nosso Olympo ele está ao lado de João Gilberto e Carmem Miranda.”, diz Zé Celso.

A equipe

A equipe de criação é composta por parceiros de longa data do Teatro Promíscuo, como a atriz Débora Duboc e também parceiros de criação do diretor Rogério Tarifa. A música – que é um ponto forte da montagem – tem a presença da dupla William Guedes (direção musical) e Jonathan Silva (composição). No ato-espetáculo musical, canções originais e inéditas, em sua maioria, são executadas ao vivo pelos intérpretes e músicos. Luiz André Cherubini, fundador do histórico Grupo Sobrevento, assina, com Tarifa, a direção de atores e a cenografia, além do teatro de animação, que traz para a montagem a linguagem do teatro de objetos e bonecos, aprofundando a poesia e o olhar crítico necessários para o desenvolvimento do enredo.

Na direção de movimento e preparação corporal, Marilda Alface é responsável por produzir uma linguagem coral corporal que conduz as cenas entre a precisão das caminhadas de butô e as danças populares. Completando a equipe de criação, temos Juliana Bertolini nos figurinos, Andreas Guimarães no cenário – ao lado de Tarifa e Cherubini – e Marisa Bentivegna na iluminação.

Cronologia

‘O que Mantém um Homem Vivo?’ foi encenada e dirigida pelo próprio Borghi, com a codireção de José Antônio de Souza, no final de 1973 em meio a um dos períodos mais violentos da ditadura militar no Brasil. Anos mais tarde, em 1982, às vésperas da redemocratização, o texto teve uma segunda montagem não menos impactante no TBC e novamente estrelada por Renato e Esther, mas desta vez, com direção conjunta de Elias Andreato e Marcio Aurélio.

Cinco décadas depois, a peça recebe uma nova versão pelo Teatro Promíscuo, dirigida pelo próprio trio de atores que encarnava seus textos – Renato Borghi, Elcio Nogueira Seixas e Georgette Fadel. O espetáculo esteve em cartaz no Teatro Anchieta e no TUSP até o país ser atingido pela pandemia de COVID-19. Durante a quarentena, Elcio Nogueira Seixas lê toda a obra de Brecht para elaboração do novo roteiro que viria a se tornar a peça “O QUE NOS MANTÉM VIVOS?”.

Em 2022, após Renato Borghi passar por uma cirurgia no coração e se fazendo a pergunta que dá título à peça, o espetáculo estreou no Sesc Consolação, contemplado pelo 12ª Edição do Prêmio Zé Renato.

Serviço

Teatro Sérgio Porto | O que nos mantém vivos?

Quando: 24 de fevereiro a 17 de março

Horários: sexta e sábado, às 19h. Domingo, às 18h

Duração: 180 minutos [com 15 minutos de intervalo]

Classificação indicativa: 16 anos

Capacidade de público por sessão: 118 lugares

Local: Teatro Sergio Porto

Endereço: Rua Humaitá, 163 – Humaitá, Rio de Janeiro