Agora no isolamento parece que tenho olhado mais para as montanhas. Elas sempre nos cercaram aqui em Friburgo. Nos deram uma elaborada moldura e uma sensação (talvez bem falsa) de segurança, acolhimento, limites demarcados. Aqui, dentro deste vale, meio blindada (?) estava Nova Friburgo. Digo estava porque, em 2011, a chuva transpôs a cordilheira e trouxe a tragédia. Agora, a barreira de pedra também não pôde nos proteger deste vírus.

Há meses isolada, olhar para fora me é tão necessário e possível como olhar para dentro. Da minha vista, há as Catarinas e as Duas Pedras. (Há também as adoráveis palmeiras do Colégio Anchieta, diga-se de passagem). Tenho feito mais atenciosamente o exercício de olhá-las várias vezes durante o dia. Também tenho mediado o clube de leitura social (gratuito, para quem puder e quiser e ainda na ativa, aos sábados pela manhã através do Google meeting) da FLINF- Festa Literária de Nova Friburgo, onde estamos tendo o prazer de ler Ideias para Adiar o Fim do Mundo, de Ailton Krenak.

Eis que um trecho (dentre vários, porque o texto é despertante) chamou a atenção do nosso grupo, formado por moradores da serra, “No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas.” Te lembrou alguma coisa, querido leitor? A semelhança com a nossa família de Catarinas? Me tocou especialmente. Ele continua: “E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas.”, Ou seja, são da família mesmo, né? Essa comunidade não esteve isolada das montanhas e da conexão com a natureza.

Eu me toquei que nunca contei para mim ou para os meus filhos a história dessa família. Nem mesmo sei. Nem mesmo inventei. Já subi na mãe (hahaha sempre a mãe), que me acolheu em colo depois de uma subida para chegarmos a tempo de assistir o sol nascendo. Sim, friburguense sobe e desce morro e ladeira e trilha suas montanhas. Mas a gente tem essa conexão? A gente conta essas histórias? São nossa família? Eu confesso que nunca tinha pensado assim… Krenak pergunta: “Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?”

É muito provocativo. Que novas histórias podemos contar se enxergamos nossa terra como nossa “família”?  Que novas histórias podemos viver e? Pai, mãe e filho (não seria filha?), as Catarinas já nos sugeriam essa familiaridade. A gente estava isolado? Como podemos integrar ao nosso quintal, o vigilante Cão Sentado, o Imperador (passou por aqui e ficou?), o Chapéu da Bruxa, a Caixa de Fósforos (um sambinha ou uma ideia para aquecer?) que sempre nos observaram por aqui, no limiar do nosso cotidiano?

Pano para manga. Fecho com Krenak, que em 2019 alertou que nosso tempo é especialista em criar ausências: “do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.” Me pergunto do quanto nos furtamos quando, antes da pandemia, éramos livres em ir e vir, mas talvez desatentos, em outras espécies de confinamentos. O quanto não lidamos com nossas montanhas mais com esse sentido de nossa proteção e menos como integração e conexão. Repito: o quanto elas nos dão uma falsa sensação de segurança por aqui?

Estou longe de outras pessoas da minha família e amigos e na presença de alguns. As Catarinas me olham diariamente. Temos conversado sobre Krenak e sua provocação de adiar o fim do mundo contando mais uma história. “Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim, ele diz.

“Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser”.”

Maria Fernanda Macedo é jornalista e mestre em Comunicação Social. Passa pela rica e desejada experiência de dar aula para universitários de comunicação. É fundadora da FLINF – Festa Literária de Nova Friburgo. Assessora de comunicação, atuou bastante na área cultural (Som Livre, Fundação Roberto Marinho, Rocco, Bienal Internacional do Livro Rio, Sesc, Approach).